Profissionalismo e alegria
5 de outubro de 2010A vida de um músico de orquestra tem algo de caserna: acordar cedo, exercícios, apresentar-se pontualmente aos superiores, repetir impecavelmentre as mesmas ações, obedecer a ordens. E estar pronto para a "bronca" e a punição, caso algo dê errado.
Suportar tal disciplina quase militar é, sem dúvida, ainda mais difícil quando a pessoa tem entre 13 e 25 anos e vem do "país do sol e da alegria", como (também) se gosta de ver o Brasil. E, no entanto, é justamente isto que os jovens da Sinfônica Heliópolis realizam há cinco anos, dia após dia: encontrar o prazer da música através da prática disciplinada.
Transformando vidas
O conjunto nasceu por iniciativa do maestro Silvio Baccarelli, a partir do centro de educação musical fundado por ele em 1996 em Heliópolis, a segunda maior favela da América Latina, em plena metrópole de São Paulo. A presença da instituição cultural nessa área de carência social elevada não só abriu novas perspectivas de vida para os jovens envolvidos, como transformou radicalmente a comunidade.
O violinista Pedro Almeida Andrade, de 22 anos, iniciou em 2000 seus estudos de música no Instituto Baccarelli e divide atualmente com Dan Rafael Lira Tolomoni o posto de spalla, o mais alto na hierarquia da orquestra. Morador de Heliópolis, Pedro descreve as mudanças sociais que percebe em seu ambiente.
"Cultura, música, isso só ajuda a apaziguar o espírito das pessoas, eu acredito. E lá não tem como você não se comover, não sentir nada, quando você vê, subindo ali a favela, um monte de crianças vestidas com a camisa do instituto para ir ensaiar. Os pais apoiam, a comunidade apoia, todo mundo parece que está ali unido nessa."
Gênio e dificuldades em Villa-Lobos
No segundo semestre de 2010, a Sinfônica Heliópolis está realizando sua primeira turnê fora do Brasil, passando por Alemanha, Inglaterra e Holanda, regida por Roberto Tibiriçá, que sucedeu Baccarelli como maestro titular.
Um dos pilares do repertório da orquestra são as peças do brasileiro Heitor Villa-Lobos, em especial a Bachianas Brasileiras nº 4. Tibiriçá explica por que, ainda hoje, a obra orquestral do compositor falecido em 1959 apresenta obstáculos de execução.
"É muito difícil. Villa-Lobos era um gênio, mas era um autodidata em tudo: ele tocava violoncelo, violão, regia, compunha, mas era uma coisa que brotava dele. Então isso nos traz dificuldades técnicas. Não é que ele não tivesse noção do instrumento. Mas ia para o piano e tocava: [canta frase frenética e aguda] "Ai que lindo!", e botava para o violino fazer. Então, em toda a obra de Villa-Lobos tem uma passagem em que é complicado. Eu costumo dizer que nem com a 'Filarmônica dos Anjos' aquilo sai perfeito!"
Vitória da alegria
Porém o batismo internacional da Sinfônica Heliópolis, no Festival Beethoven de Bonn, provou que ela está no melhor caminho da almejada perfeição musical. Seu programa incluiu a estreia mundial de Cidade do Sol, obra encomendada pela Deutsche Welle, em que o brasileiro André Mehmari retrata a própria orquestra paulista; além da Oitava sinfonia em fá maior, op. 93 de Ludwig van Beethoven, numa concepção que já emocionou o próprio Zubin Mehta, monstro sagrado entre os regentes da atualidade.
No Concerto para violino e orquestra em ré maior, op. 35 de Piotr Tchaikovsky, o solista foi Shlomo Mintz, um dos principais violinistas de sua geração. Ainda durante os ensaios intensos e meticulosos, o virtuose russo louvou tanto as qualidades musicais quanto humanas dos 75 jovens.
"É uma boa orquestra, já os vi trabalhar antes. A coisa mais importante aqui é entusiasmo e a disposição para aprender com quem é mais experiente como pessoa e como músico. E acho que o seu amor pela música e o seu grande, ardente interesse em se desenvolver são as qualidades mais importantes que eles possuem. E são gente muito boa!"
Entretanto, quem conhece o espírito brasileiro bem sabe: não basta ser excelente, é preciso chamar a atenção. E foi isso que as moças e rapazes de Heliópolis conseguiram, já desde a sua entrada no palco da sala Beethovenhalle, em ritmo de samba. Uma coreografia esfuziante e cheia de espontaneidade, com violoncelos rodopiantes e trompas lançadas ao ar.
A partir desse momento, músicos e público se encontravam mesmo na terra do sol e da alegria: de dureza e de caserna, nem sombra.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Alexandre Schossler