Sintonia de uma metrópole
9 de novembro de 2002Se o 3 de outubro foi escolhido pela Alemanha como o marco da reunificação, ocorrida oficialmente quase um ano após a queda do Muro de Berlim, foi no 9 de novembro de 1989 que a fronteira de concreto realmente ruiu. Treze anos mais tarde, passado o choque do reencontro entre alemães ocidentais e orientais e deixada para trás a euforia da transformação da cidade na nova capital do país, Berlim parece ainda não ter conseguido se livrar dos clichês que impregnaram sua imagem nas últimas décadas.
Da meca alternativa dos anos 80 e do laboratório em transição que a cidade foi nos 90, quiseram criar uma vitrine do que se procura vender como o life style do novo milênio. Apesar da resistência quase ingênua dos remanescentes de 68 no bairro Kreuzberg e dos nichos "anti" que ainda pipocam pela cidade, a Berlim de hoje cumpre, mesmo que não à risca, a programação que lhe imprimiram.
História na vitrine
Aos poucos, a cidade foi dando gradualmente adeus aos andaimes e às gruas, que ironicamente definiram a poesia da paisagem urbana no decorrer da década de 90. Hoje, o Portão de Brandemburgo brilha como nunca, após ter sido polido e lustrado para acolher diplomatas e banqueiros de plantão.
A Pariser Platz, imediatamente à sua frente, não deixou o menor vestígio do espaço abandonado e gélido do início dos anos 90. Pós-queda do Muro, muita coisa ali aconteceu, em uma tentativa de transformar a história em vitrine, ou melhor, de soterrar a história, transformando-a em um imóvel bem cotado no mercado.
Nova ordem alemã
Procurou-se, com o boom de construções imponentes e fachadas quase agressivas, definir à força uma nova ordem alemã. Os berlinenses começaram, pasmos, a presenciar pouco a pouco os resultados desastrosos de projetos milionários, empreendidos aqui e ali por arquitetos vips.
No entanto, a vontade de submeter ao controle da vontade oficial o caos urbano de uma cidade, que passou décadas dividida, acabou resultando em um alinhavado mal feito. Num tempo em que o vazio dos arredores do Portão de Brandemburgo ou uma desértica Potsdamer Platz não passam de um vago registro de memória, o que a nova Berlim propõe deixa na boca um gosto tão artificial quanto um sorvete açucarado de pistache.
Ideais despedaçados
Sem despedir-se do perfil cômodo das vantagens oferecidas por décadas a seus habitantes – em tempos de Muro – e movida pela geração de yuppies disfarçados de artistas que hoje circula por Berlim-Mitte, a cidade vai, mesmo que aos tropeços, cumprindo a função que lhe outorgam.
Apesar disso, como que em busca de uma inocência perdida, a tão propagada metrópole alemã dá sinais de que pode, sim, sutilmente, recusar-se a ser o que dela pedem. "A imagem idealizada da cultura de uma capital, que ofusca todo o país, despedaçou-se na realidade berlinense", comenta o diário suíço Neue Zürcher Zeitung.
Ainda um parque de diversões para uma população especialista em consumo cultural, a cidade, que querem transformar em centro, insiste em guardar rastros de seus tempos de "periferia gloriosa", em que boa parte do lado ocidental se orgulhava de viver em uma ilha cercada de concreto por todos os lados.
Anos 20
Com cofres públicos cada vez mais vazios e resquícios de uma rebeldia que um dia lhe foi inerente, a Berlim do novo milênio pode estar condenada ao sonho de reaver seus longinqüos anos dourados, vividos na efervescência da década de 20. Recriada para ser o umbigo do projeto "Alemanha Reunificada", a cidade – como ela é – dá sinais de que tamanha incumbência pode ser demais para seus ombros.
De cara e roupagem novas, a única herança do passado é o eterno tom de rispidez tão peculiar à cidade. Segundo o Neue Zürcher Zeitung, "isso, no entanto, não faz com que Berlim deixe de ser, como sempre foi, a cidade mais viva, interessante e pulsante da Alemanha. Com a perda de algumas ilusões, Berlim chegou ao presente". Seja bem-vinda.