"Sucesso para governador do Rio é corpo espalhado pelo chão"
22 de maio de 2019Segundo o Instituto de Segurança Pública, a polícia do Rio de Janeiro matou em média cinco pessoas por dia em 2019, a maior cifra para o período desde o início da série estatística, em 1998. Foram 434 mortos entre janeiro e março deste ano vítimas de ação policial. "Existe uma atmosfera de atirar primeiro e perguntar depois. Talvez o perguntar depois nem esteja sendo mais utilizado", diz a deputada Renata Souza (PSOL), em entrevista à DW Brasil.
Souza é a primeira deputada negra a presidir a Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ela é a responsável pela denúncia feita à ONU e à Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o governador Wilson Witzel (PSC), que a bordo de um helicóptero acompanhou os tiros disparados contra uma tenda religiosa durante ação das Polícia Civil e Militar, em Angra dos Reis, no início do mês.
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A atuação de Souza à frente da Comissão na Alerj tem gerado conflitos. Após a denúncia, deputados do PSC entraram com um pedido para cassar o mandato dela. O pedido, arquivado pela presidência da Alerj, escancara o que ela chama de perseguição.
Ex-chefe de gabinete da vereadora Marielle Franco (PSOL), cujo assassinato, ocorrido há mais de um ano, ainda não foi totalmente solucionado, Renata Souza afirma que nunca foi ameaçada, mas que se mantém alerta. "Ainda que não haja ameaça contra a minha vida, fico preocupada, porque a Marielle também não teve nenhuma ameaça. Isso abriu uma nova perspectiva do que é atuação parlamentar de pessoas que defendem o direito à vida neste país".
DW: Você levou à ONU e à OEA uma denúncia contra o atual governador Wilson Witzel.
Renata Souza: As denúncias são feitas diante do fato de o governador ir a uma operação que utilizou helicóptero para desferir tiros contra uma tenda religiosa e que pertencia a culto religioso. Ainda bem que não tinha ninguém, porque um grande massacre poderia ter ocorrido. Aliás, há algum tempo o uso indiscriminado de helicópteros como plataforma de tiros é a política do atual governador. Enquanto fiscalizadora do Poder Executivo, questiono essas ações dentro da Alerj, mas também fiz esse informe à ONU e à OEA para provocar o governo brasileiro contra esse tipo de ação. Após receber esses informes, a ideia é que esses dois órgãos possam fazer um comunicado ao governo brasileiro cobrando medidas para que a dignidade humana seja respeitada.
A base aliada do PSC, partido de Witzel, entrou com um pedido de cassação do seu mandato...
É como uma perseguição, que aliás começa com o próprio governador Witzel, ao dizer publicamente que a Alerj deveria cassar meu mandato. Isso é um atentado à democracia, à autonomia dos Poderes. É uma ação autoritária e desmedida, já que é uma atribuição da Alerj, enquanto poder autônomo, fiscalizar o Executivo. É preciso respeitar essa prerrogativa. O Witzel não se coloca como um mediador de conflitos, mas ele próprio produz conflitos no Rio de Janeiro. Hoje é a Alerj que está sendo questionada, mas amanhã pode ser o Ministério Público ou a Defensoria Pública.
Do ponto de vista da segurança pública, como você vê os planos do atual governo?
O Instituto de Segurança Pública apresentou um relatório que mostra o aumento da letalidade policial. Apenas no 1 trimestre, são 434 mortes, um número elevadíssimo, e que bate recorde na série história de 21 anos. Estamos vendo o governador aplicando uma política pública que é equivocada na sua essência, porque ele aumenta o nível de confronto, sem pensar no que pode ser uma política de prevenção ou no investimento em inteligência. O nível de sucesso e de qualidade que o Witzel utiliza é o número de corpos espalhados pelo chão, e isso é muito grave.
Tivemos dois casos emblemáticos que marcaram esses primeiros meses de do ano: os 200 tiros no carro do músico Evaldo de Souza e a morte do professor de Jiu-Jitsu Jean Rodrigo. A partir dessas duas mortes, qual análise pode ser feita pela ótica dos direitos humanos?
Há um impacto do discurso de que tipo de segurança pública deve ser aplicado no Rio de Janeiro. No ano passado, estávamos inseridos na GLO (Garantia de Lei da Ordem) e no papel que os militares tinham a cumprir como parte do policiamento. Quando não há isso e militares se sentem legitimados a fuzilar um carro, em um domingo de sol, temos concretamente o discurso do governador e do presidente da República colocado em prática. "Viu qualquer tipo de situação suspeita, atire para matar", e foi isso que eles fizeram. Existe uma atmosfera no Rio de Janeiro de atirar primeiro e perguntar depois. Talvez o pergunte depois nem esteja sendo mais utilizado. O caso do Jean é uma triste realidade. Jovem, negro, morador de favela e periferia. De cada dez homicídios no Rio de Janeiro, sete são jovens com esse perfil. O que há em curso é um racismo estrutural e estruturante, que vê na periferia e no corpo negro um inimigo a ser eliminado.
Mais de um ano após a morte de Marielle Franco, como você analisa o legado dela na política institucional do Rio de Janeiro?
É muito simbólico que 14 meses sem resposta sobre o mandante da morte da Marielle, eu, que fui chefe de gabinete dela, também sofra tentativas de interrupção do meu mandato. Não com a violência e a agressividade de uma execução sumária. Mas, assim como Marielle, também coloco temas dentro da Alerj que dizem respeito à dignidade humana daqueles que mais sofrem e morrem. Todo debate sobre desigualdade social incomoda, principalmente essa estrutura de podres poderes que no Rio de Janeiro é muito afinada com estruturas mafiosas
Você tem sofrido ameaças desde que assumiu o cargo de deputada? Sente algum medo?
Nunca recebi nenhuma ligação, e-mail, nada disso. Mas, ainda que não haja ameaça contra a mim, fico preocupada, porque a Marielle também não teve nenhuma ameaça, e isso abriu uma nova perspectiva do que é atuação parlamentar de pessoas que defendem o direito à vida neste país. O Brasil é o país que mais mata defensores dos direitos humanos, seja no parlamento, como no caso da Marielle, ou em ativistas, como a Dorothy Stang.
Tenho dito que o caso da Marielle foi um feminicídio político: uma mulher que estava na linha de frente e é assassinada. Mulheres nesses lugares estão expostas a todo momento. Estou alerta e tomando medidas de segurança física, para que nós não tenhamos mártires. Não precisamos disso e não quero estampar uma camiseta ou um broche. Quero permanecer viva e seguir lutando contra a desigualdade social, o machismo e a LGTFobia.
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