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"Só uma mulher sabe o que é ter uma gravidez indesejada"

Luisa Frey
14 de julho de 2017

Especialista em saúde reprodutiva comenta estágio do debate sobre aborto no Brasil, onde há "propostas absurdas". Ela aponta contradição entre visão conservadora e movimento progressista liderado por mulheres.

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Protesto a favor dos direitos das mulheres no Rio de Janeiro, em novembro de 2015
Protesto a favor dos direitos das mulheres no Rio de Janeiro, em novembro de 2015Foto: Priscilla Moraes

O aborto é considerado crime no Código Penal Brasileiro com exceção de três circunstâncias: quando a gravidez representa risco de morte para a mulher, quando a gravidez é resultante de estupro ou quando o feto é anencefálico.

O assunto é foco de constantes discussões na sociedade brasileira. Recentemente, a epidemia do vírus zika reavivou o debate sobre o direito ao aborto, especificamente devido ao risco de microcefalia provocado pela doença.

Também gerou polêmica o projeto de lei PL 1465/2013, do Distrito Federal, que prevê que imagens do desenvolvimento fetal sejam mostradas a mulheres vítimas de estupro antes de deixá-las decidir se querem ou não abortar. Após milhares aderirem a uma campanha online, o governador Rodrigo Rollemberg comprometeu-se a vetar a proposta, o que deve fazer formalmente até a próxima semana.

"Muito do tempo das feministas, do movimento progressista no Brasil, foi gasto nas últimas décadas para barrar o avanço de propostas absurdas", destaca a psicanalista e pesquisadora da Unicamp Margareth Arilha, que se dedica desde os anos 1980 a questões de gênero, saúde reprodutiva e políticas públicas.

Em entrevista à Deutsche Welle, a especialista discute a questão da descriminalização do aborto no Brasil e fala sobre os avanços e retrocessos dos direitos reprodutivos no país. "A luta sempre partirá mais da mulheres. Sempre será difícil para um homem compreender", diz.

DW Brasil: A mais recente polêmica envolvendo o aborto no Brasil diz respeito a um projeto de lei do Distrito Federal que propõe que imagens de fetos sejam mostradas a vítimas de estupros antes de um aborto. O que essa proposta diz sobre o estágio atual do debate sobre o aborto no Brasil?

Margareth Arilha: Esta proposta é uma a mais entre centenas. Propostas absurdas como essa pipocam no Brasil com muita frequência, e elas não me surpreendem, pois há um grupo de parlamentares conservadores, vinculados ou não a grupos religiosos, que ocupam um espaço de poder crescente. Infelizmente o aborto é algo que eles usam como uma bandeira para criar uma aura de bondade, de moralidade, que falaria a favor da sua honra, dos seus bons princípios.

Temos uma distorção muito complicada no país, e ela não tem ajudado em nada nos últimos anos, tem feito brotar projetos uns mais absurdos que os outros no campo do direito ao aborto. Muito do tempo das feministas, do movimento progressista no Brasil, foi gasto nas últimas décadas para barrar o avanço das propostas.

Ao mesmo tempo que uma grande parcela da população apoia essas ideias conservadoras, vemos campanhas como a que recentemente pressionou o governador do Distrito Federal. A sociedade brasileira vem se mobilizando mais a favor do aborto?

Vivemos uma contradição no país neste momento. De um lado, temos autoridades eleitas mais conservadoras, e de outro, temos avanços na sociedade incríveis. Por exemplo, nos colégios e nas faculdades é hoje muito comum observar uma organização espontânea de grupos feministas. O movimento LGBT também cresce naturalmente no país como um todo. Vemos crescer mudanças na atitude sexual e reprodutiva das pessoas, sobretudo entre os mais jovens. É impressionante o número de meninas jovens que que vão para a rua defender o direito às decisões em torno do próprio corpo.

Já há alguma mudança de postura dos homens quanto à defesa do direito ao aborto?

Eu acho que isso sempre partirá mais das mulheres. No fundo, só uma mulher sabe do que se trata uma gravidez indesejada. Sempre será difícil para um homem conseguir compreender isso. Mas por meio de informação, de acesso ao debate, os homens podem se tornar mais sensíveis e mais simpáticos aos direitos reprodutivos das mulheres e ao aborto.

Protesto a favor dos direitos das mulheres no Rio de Janeiro, em novembro de 2015
Protesto a favor dos direitos das mulheres no Rio de Janeiro, em novembro de 2015Foto: Priscilla Moraes

No fim do ano passado, o STF decidiu descriminalizar o aborto no primeiro trimestre da gravidez em um caso específico, o que pode abrir jurisprudência. Que outros avanços você citaria?

Atualmente, há um movimento de torção que é a saída do Legislativo e a ida para o Judiciário, visto como uma instância que poderia estar mais acessível às demandas relacionadas à mudança do direito ao aborto. Nos últimos anos, tem acontecido iniciativas que vão criando jurisprudência, como a questão da anencefalia, aprovada do STF em 2012, e esse posicionamento no ano passado relacionado à petição de habeas corpus para médicos envolvidos em aborto. Esses posicionamentos vão criando um histórico positivo, uma cultura favorável. A esperança é que, num Brasil que está sendo passado a limpo, quem sabe o direito ao aborto também possa ser debatido e conquistado.

Qual seria o efeito de uma descriminalização completa do aborto?

A redução do sofrimento. As mulheres poderiam ser sujeitos de seus direitos e de suas decisões e serem atendidas com dignidade pelo Estado. No momento em que o aborto deixa de ser crime, ele não precisa acontecer às escuras.

As mulheres continuam abortando clandestinamente, muitas vezes com acesso ao misoprostol, que só é permitido no Brasil para uso hospitalar, para ajudar na dilatação do parto. As mulheres acabam procurando o remédio no mercado negro e encontrando medicamento falsificado, muitas vezes de baixa qualidade e com preço alto.

Hoje se tem menos processos infecciosos, porque o uso de agulhas de tricô ou objeto cortantes e perfurantes é reduzido. A entrada de mulheres nos hospitais se dá hoje mais por processos hemorrágicos em consequência de tentativas inadequadas de aborto. Tudo isso seria eliminado com a descriminalização.

Existe algum exemplo nesse sentido mundo afora?

Na Cidade do México, o aborto até a 12ª semana de gravidez foi descriminalizado [em 2007]. Houve grandes problemas com médicos que se recusavam a fazer o procedimento alegando objeção de consciência. Tiveram que formalizar um edital para a contratação de médicos que não se colocassem dessa maneira. 

No Brasil, ainda não se conseguiu nem garantir o atendimento nos casos previstos por lei. Hoje, pesquisas mostram que há 37 ditos serviços de aborto legal no país, o que é nada. Dados de 2015 estimam que uma mulher realiza um aborto a cada minuto no país. Os próprios hospitais que realizam o aborto legal muitas vezes, para não serem estigmatizados, não gostam de se apresentar como serviço de referência para a prática.

Além disso, é preciso uma política específica de atendimento em saúde mental no âmbito da vida reprodutiva. As mulheres estão completamente abandonadas em seu sofrimento.

Assim como no México, tramita no Brasil um projeto de lei que regulamenta a objeção de consciência. As convicções morais, éticas ou religiosas de um médico podem falar mais alto que os direitos reprodutivos da mulher?

Isso é uma questão que o Estado pode resolver. Veja o exemplo do México. É claro que pode haver médicos que dizem não conseguir realizar tal trabalho, mas o Estado é obrigado a resolver isso e colocar profissionais que aceitem realizar o procedimento.

Qual a situação do direito ao aborto no Brasil em relação ao de outros países?

O Brasil continua sendo um dos países de legislação mais restritiva no mundo. Na América Latina, temos países com posições mais retrógradas, como El Salvador, Nicarágua, República Dominicana. Mas quando se olha o mapa das legislações no mundo, é deplorável que o Brasil ainda apresente uma posição tão limitante dos direitos das mulheres.