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"Tenho muita honra em ter participado na descolonização", diz Mário Soares

Guilherme Correia da Silva25 de abril de 2014

Ex-presidente português foi o primeiro a assumir os Negócios Estrangeiros após a revolução de 25 de Abril. Em entrevista, Soares fala sobre a descolonização e faz o balanço de 40 anos de liberdade em Portugal.

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Foto: picture-alliance/AP

O ex-presidente de Portugal Mário Soares, de 89 anos, esteve na linha da frente da oposição à ditadura fascista no país. Foi preso várias vezes pelo regime ditatorial e esteve exilado em São Tomé e Príncipe e na França.

Foi no exílio que Soares recebeu a notícia do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, que pôs fim ao regime ditatorial do Estado Novo. Assim que soube o que estava ocorrendo, apanhou um trem com destino a Portugal. O histórico líder do Partido Socialista conta que regressou com três ideias para o país: democratizar, desenvolver e descolonizar.

No dia em que foi empossado como ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro governo pós-ditadura, Soares foi logo para Dacar, a capital senegalesa, para iniciar conversações com o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Em Zâmbia, Soares protagonizou, com Samora Machel, o chamado "abraço de Lusaca", nas negociações de Portugal com a Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo – movimento de independência moçambicano que se transformou em um partido político e encontra-se no poder desde 1975.

Mas muitos criticam a forma como Soares conduziu a descolonização. Particularmente os portugueses que tiveram que abandonar as ex-colônias, os "retornados", como são conhecidos em Portugal.

Soares foi primeiro-ministro de Portugal em três períodos (de 1976 a 1977, em 1978 e de 1983 a 1985) e presidente de 1986 a 1996.

DW: Como o senhor recebeu a notícia do 25 de Abril?

40 Jahren Nelkenrevolution in Portugal Porträt Mario Soares, Politische Polizei
Mário Soares foi detido várias vezes pela polícia política portuguesa, a PIDEFoto: Casa Comum / Fundação Mário Soares

Mário Soares: Estava justamente na Alemanha a convite do meu amigo Willy Brandt [então chanceler federal alemão]. Estava com a minha mulher e com mais dois camaradas meus, que eram também dirigentes do Partido Socialista.

Na véspera, falamos com o ministro das Finanças alemão [Helmut Schmidt], que tinha estado na guerra de Espanha. Ele era todo a favor de Espanha e achava que Portugal não tinha assim grande importância.

Ele disse-me: "Olhe que vocês só se podem libertar da ditadura [de António Salazar e posteriormente de Marcello Caetano] quando houver a libertação do Franco, em Espanha". E eu disse-lhe: "Olhe que não é assim, nós somos os primeiros a libertar-nos, antes da Espanha e da Grécia", como realmente fomos.

Estivemos toda a noite a discutir isso. No dia seguinte, de manhã cedo, telefona a responsável pelos partidos socialistas estrangeiros que iam lá à Alemanha. E diz: "Afinal, parece que tem razão, está-se a passar qualquer coisa em Portugal."

O 25 de Abril foi uma surpresa?

Não, porque eu estava sempre à espera que houvesse uma revolução. Eu sabia que o que se estava a passar era uma coisa absurda. E cheguei a Portugal com três ideias na cabeça – muito simples, mas importantíssimas. A primeira era descolonizar, a segunda era democratizar e a terceira era desenvolver o país.

Enquanto estive [no exílio] em Paris, tinha tido muitos contatos com os africanos que lá iam, que me iam cumprimentar e diziam: "O que é que se vai passar, como é que se vai passar?" A minha primeira ideia era descolonizar. Sem descolonização não se passaria a nada, porque a guerra continuaria. E eu fui, de fato, a primeira pessoa que chegou a Angola e disse: "Vocês vão ser independentes!" Já era ministro dos Negócios Estrangeiros, diga-se.

Em outras entrevistas, o senhor disse que tinha em mente uma "descolonização possível". O que isso significava?

Significava que queria chegar e ter a descolonização para parar com as guerras. E, de fato, é preciso ver que, quando cheguei, não sabia o que se ia passar. Logo no primeiro dia, o general António de Spínola [primeiro presidente português após a revolução] acreditava que era possível manter uma espécie de acordo e fazer a paz com as colônias, ficando elas colônias. Eu disse-lhe logo que isso não tinha sentido nenhum e que tínhamos de dar a independência às colônias – sem isso nada feito. Por isso é que eu digo, descolonizar em primeiro lugar, não havia democracia possível sem isso.

Sambia Portugal Mosambik Mário Soares und Samora Machel in Lusaka
Encontro de Mário Soares com Samora Machel em Lusaca, em junho de 1974Foto: casacomum.org/Arquivo Mário Soares

O senhor esteve em Lusaca para negociar a independência de Moçambique. Encontrou-se com Samora Machel, da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). No início das conversações, o senhor deu um abraço em Samora Machel. Por que o senhor decidiu deixar o protocolo de lado e abraçá-lo?

Eu não decidi nada. Foi uma coisa completamente espontânea. O Kenneth Kaunda [ex-presidente de Zâmbia] disse-me: "Meu caro senhor, isso vai-se passar assim: há uma grande mesa onde está, de um lado, todo o ministério, eu próprio e os embaixadores e, do outro, estão os jornalistas de todos os países do mundo. O senhor entra por um lado, e o Samora entra pelo outro. Fazem uma vênia e ficam cada um no seu lugar. E eu faço um discurso." Eu pensei com os meus botões: "Este Kaunda julga que eu sou inglês, mas eu não sou inglês." Ele fazia tudo à inglesa. "Eu não sou inglês, sou português. É uma coisa muito diferente." Portugal já existia antes de existir a Inglaterra propriamente dita. E eu disse-lhe: "Está bem, sim, senhor, vamos ver." E assim foi.

Entramos os dois. E o Samora, que eu não conhecia, fez um sorriso amplo. Eu fiz um sorriso mais amplo e, sem fazermos o que queria o Kaunda, fomos ao encontro um do outro e demos um grande abraço. Foi o chamado abraço de Lusaca. Invertemos todo o protocolo e, a partir do abraço, toda a gente começou a bater palmas, jornalistas incluídos. O Kaunda nem chegou a falar.

Que repercussões teve este abraço?

Era um abraço simbólico. Mas, ao mesmo tempo, foi um abraço de um tipo [pessoa] que era muito hábil e muito inteligente, que era o Samora, e de eu próprio: ambos queríamos fazer a mesma coisa, que era fazer a paz através da independência.

Seria possível ter evitado a guerra civil em Angola ou Moçambique se a descolonização tivesse sido feita de outra forma?

Não. Ou a descolonização era feita a sério ou não. Porque o regime de Salazar não acreditava sequer que isso fosse possível. Depois, com Marcello Caetano, a emenda foi pior que o soneto, porque eles queriam fazer umas pequeninas coisas, mas acabaram por não conseguir fazer nada. Eles não eram a favor da descolonização. Não percebiam a importância que tinha a descolonização feita em paz. E, realmente, eu tive dificuldades em vários países europeus. Diziam: "Mas vocês querem fazer a descolonização neste tempo?" Queremos.

Porque eu convivi com todos eles, desde o tempo em que havia uma coisa que se chamava a Casa dos Estudantes do Império. Eles traziam os melhores estudantes africanos para cá. Foi o ninho de onde saiu tudo para fazer a revolução. Os que eram de Angola queriam a independência de Angola, os de Moçambique queriam a independência de Moçambique, e por aí fora. E isso apagou-se, porque todos são independentes.

O senhor disse que o processo de descolonização foi exemplar face às condições de Portugal pós-revolução. Continua pensando assim?

Pois foi. Houve tiros? Não houve. Houve lutas? Não houve. Houve paz? Houve. A paz é o principal. E o bom relacionamento que fica em virtude da paz.

Depois, quando houve guerras entre eles, claro que nós não podíamos tomar partido. Quando me diziam: "Você é do Savimbi! [líder militar fundador da Unita, movimento que lutou pela libertação de Angola]". Não sou. "Você é do MPLA! [Movimento pela Libertação de Angola, opositor da Unita]" Não sou. "O que é que você é?" Sou de Angola, sou a favor de Angola e da independência em Angola, mas não me tenho que me meter nas vossas lutas. Queria era que vocês fizessem a paz entre vocês. E lutei por isso. Não foi possível.

Que balanço o senhor faz hoje da descolonização, olhando também para as dificuldades que a maior parte das ex-colônias portuguesas ainda estão enfrentando?

Bem, as dificuldades resultam de várias circunstâncias… Mas a verdade é que não têm assim grandes dificuldades. Porque Angola é um país riquíssimo – tem petróleo, diamantes e muitas outras coisas por explorar. Moçambique é hoje tão rico ou mais do que Angola, porque, além de tudo, tem gás natural, também tem petróleo e, cada vez mais, está-se a ver que vai ser um país de uma riqueza enorme.

Enquanto foram colônias ninguém sabia que havia petróleo. Quando disseram ao Salazar que parecia haver petróleo em Angola, ele pôs a mão na cabeça e disse: "Que desastre maior é que nos vai suceder ainda?" Era a visão dele. Enquanto eles foram colônias ninguém se interessou pelo que eram as colônias. Queriam era extrair dinheiro de lá para trazer para cá. Mais nada.

De qualquer forma, muita gente continua ainda hoje vivendo na pobreza…

Pois continua. Mas isso é outra questão. É a questão social. Haver ou não haver dirigentes competentes. Isso agora já é com eles, não é connosco.

O senhor continua ouvindo críticas dos retornados?

De vez em quando, os chamados retornados dizem… Mas, na altura, eu fui condenadíssimo por causa da descolonização. Os retornados nunca perceberam que foi a sorte grande que lhes saiu. Nunca perceberam isso. Vieram para Portugal em condições difíceis, é verdade. Porque se assustaram e fugiram. Chegaram a trazer automóveis; outros nem isso, não trouxeram nada. E nós arranjamos uma solução para lhes dar tudo. Demos-lhe dinheiro, casas… Fomos nós! Porque logo a seguir fui presidente do governo e, por isso, dirigia essa questão.

E eles a dizerem: "Você roubou Angola e vendeu Angola aos russos." Tudo isso, claro, são mentiras puras. E, realmente, estou muito orgulhoso do que se fez com a descolonização. Tenho muita honra em ter participado nisso ativamente.

Olhando para trás e para os dias de hoje, Portugal tornou-se o país pelo qual o senhor lutou, foi preso e exilado?

Depois do 25 de Abril, Portugal foi um país extraordinário. Nós fizemos tudo. Entramos na União Europeia, um grande gesto. Desenvolvemos uma política social imensa. Tivemos um serviço nacional de saúde gratuito. Houve respeito pelos sindicatos de todas as naturezas. E o diálogo social entre sindicatos e empresas para fazermos a concertação social. Tudo isso se fez. Fizemos um país que, até à crise, era um país extraordinário.

Agora, há uma crise social? Há! Há uma crise política? Há! Há uma crise moral? Há! Sobretudo moral e ética. Há uma crise sobre todos os aspetos atualmente. E isso está a destruir Portugal ou está a tentar destruir Portugal.