Tensão e insegurança marcam aniversário do Inpe
5 de agosto de 2020Ao completar 59 anos neste mês de agosto, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não foi palco de celebrações animadas, mas de tensão entre pesquisadores e funcionários. Em trabalho remoto devido à pandemia, a maioria de seus cientistas acompanha de longe a reestruturação em curso chefiada pelo coronel da Aeronáutica Darcton Policarpo Damião, que comanda o instituto interinamente há um ano.
Durante evento comemorativo na segunda-feira (03/08) transmitido pela internet, Damião disse que o Inpe fica mais "horizontalizado” com a reforma, que teve "a participação de todas as áreas do instituto”.
Essa versão é contestada por funcionários e pelo Sindicato dos Servidores Públicos Federais na Área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial (SindCT). "Ainda não sabemos qual será o efeito dessa reestruturação. Tudo saiu da cabeça dele [Damião] e do ministro [Marcos Pontes, da Ciência], sem discutir com as instâncias internas de decisão, como o Conselho Técnico Cientifico. A proposta não passou pelos comitês assessores internos”, afirma Acioli Antonio de Olivo, pesquisador aposentado e membro da diretoria do sindicato.
O medo é que, por trás das mudanças anunciadas, esteja a intenção de impor um controle absoluto dos dados gerados pelo Inpe que vêm gerando problemas de imagem para o governo de Jair Bolsonaro, especialmente no exterior: o índice de desmatamento.
"O que está em jogo é minar e enfraquecer as estruturas que funcionavam desde a fundação do Inpe e que geram esse dados”, analisa Gilberto Câmara, cientista e ex-diretor do instituto. "Só pode ser isso”, disse à DW Brasil.
Em 2019, a Amazônia foi palco do maior desmatamento dos últimos dez anos, com perda de uma área de 10.129 quilômetros quadrados (quase o dobro da área do Distrito Federal). Em 2020, as taxas têm aumentado mês a mês. É algo que gera muitas críticas internacionais a Bolsonaro, com cada vez mais investidores ameando retirar dinheiro do país caso o cenário não seja revertido.
O ex-diretor Câmara, que atualmente dirige o Secretariado do Group on Earth Observations (GEO, grupo de observação da Terra, baseado em Genebra e formado por dezenas de países e organizações), é um dos nove candidatos à chefia do Inpe, que está em processo de busca de um novo diretor. O militar Damião, que assumiu o posto interinamente após a exoneração de Ricardo Galvão em agosto de 2019, também concorre para a vaga fixa.
Mudanças na área de pesquisa ambiental
Assim que chegou ao instituto, Damião anunciou que havia recebido do ministro Marcos Pontes, a incumbência de conduzir uma reforma. Questionado à época sobre os motivos e os detalhes da reestruturação, o coronel dizia ainda não ter um plano definido.
"Nenhum estudo detalhado em que se apontam as fragilidades foi apresentado. Criou-se uma estrutura paralela em que ele começou a chamar algumas pessoas para fazer uma discussão privada”, afirma Olivo, do SindCT.
Quase um ano depois, Damião detalhou que reagruparia as 15 coordenações em oito órgãos subordinados à direção. Isso provocou a exoneração de Lubia Vinhas da coordenadoria-geral do grupo de Observação da Terra, sistema responsável pelo monitoramento do desmatamento da Amazônia. A saída da pesquisadora do posto, em julho, ocorreu logo após a divulgação de mais uma alta na destruição na floresta.
Diante da repercussão do caso, Marcos Pontes negou que a exoneração tivesse ocorrido em retaliação à divulgação dos dados.
Com a reforma, a Coordenação de Observação da Terra deixa de existir e passa a fazer parte de uma nova diretoria, Ciências da Terra, que agregou também o Centro de Sistemas Terrestres, focado em estudos de mudanças climáticas, e o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos.
"Vão diminuir as coordenações nas áreas em que o Inpe tem maior protagonismo: mudanças climáticas, observação da terra. É que os resultados das pesquisas que eles produzem não são de agrado deste governo. Todos nós sabemos que ele não importa com as questões ambientais e é negacionista”, opina Olivo.
Muitos pesquisadores e pesquisadoras ouvidas pela reportagem na condição de anonimato dizem que há uma articulação fora do Inpe para retirar do instituto os projetos de monitoramento do desmatamento e das queimadas Amazônia.
No fim de julho, uma carta aberta assinada por 19 pesquisadores brasileiros e autores de diversos estudos científicos de impacto na área de desmatamento criticou a tentativa de terceirizar o monitoramento das florestas brasileiras, intenção já mencionada pelo ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente).
Ao "questionar os próprios dados e terceirizar o monitoramento, o Brasil estará colocando em risco sua soberania epistêmica sobre a Amazônia, perdendo a autonomia para gerar o conhecimento sobre a região”, diz o texto.
Desde 1989, o Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes), calcula anualmente a taxa de desmatamento na Amazônia e dá base a estudos científicos no mundo todo. Já o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) é usado desde 2004 para apoiar os órgãos ambientais nas ações de combate ao desmatamento.
"É seguro afirmar que não faltam dados de monitoramento para o combate ao desmatamento. Hoje, o Brasil possui um conjunto de informações muito mais rico e preciso do que em 2012 – quando a taxa de desmatamento foi reduzida ao menor valor da história e a área desmatada na Amazônia foi a metade da medida em 2019”, argumentam os pesquisadores.
Instituição militarizada
Fundado como uma instituição de pesquisa civil durante o governo militar, a chegada do coronel Damião como interventor, na visão de Câmara, mostra uma militarização dentro do instituto. "É o que o governo tem feito nos ministérios, no Ibama, dando cargos a militares que, por conta da hierarquia militar, não questionam, mas só cumprem as ordens de Bolsonaro”, pontua.
Em vídeo exibido durante o evento por ocasião dos 59 anos do Inpe, o ex-diretor Ricardo Galvão relembrou como o instituto foi criado: como uma instituição civil, e não seguindo uma hierarquia rígida.
"Temos sido atacados nos últimos anos, passado por períodos difíceis em que até nossos dados são contestados. Mas a nossa reação foi aquela que se espera daqueles que têm a segurança do conhecimento científico, profissional e honestidade de caráter”, disse, se referindo aos choques com o governo.
Sobre o futuro do Inpe, Galvão disse que espera que o novo diretor mantenha a instituição como uma entidade civil, científica e tecnológica, prestando grandes serviços ao país e estimulando o desenvolvimento.
No entanto, para muitos pesquisadores ouvidos pela reportagem na condição de anonimato, há dúvidas sobre a integridade do processo de escolha do novo diretor. Segundo o ritual, um comitê científico de busca analisa as competências de todos os candidatos e seleciona três nomes. A escolha final será feita pelo ministro Marcos Pontes.
"É difícil não acreditar que possa ocorrer uma contaminação nesta escolha”, opina Câmara, que diz não ter expectativa de ser escolhido.
"O futuro do Inpe envolve o futuro do país, pois tem a ver com a política ambiental do Brasil, que tem sido suicida neste governo Bolsonaro e que não melhora a vida de nenhum brasileiro, só daqueles que cometem as ilegalidades na Amazônia”, finaliza.
Consultado, o diretor interino do Inpe, por meio da assessoria de imprensa, informou que as perguntas da DW Brasil deveriam ser encaminhadas ao ministério. A pasta não respondeu ao pedido de informações.
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