Torcer é também um ato político?
20 de junho de 2018Sempre houve, no Brasil, quem se mostrasse indiferente à participação da seleção canarinho na Copa do Mundo e, em menor número, chegasse a torcer por rivais históricos, como a Argentina. Na atual edição, o clima turbulento no país, com crise econômica e sucessivos escândalos de corrupção, parece ter fortalecido a "torcida do contra".
O grupo é heterogêneo. Inclui aqueles que receiam o uso político de um eventual triunfo brasileiro pelo governo federal e críticos à gestão da CBF. Há também quem acredite que o futebol desvia a atenção de problemas estruturais do país.
Desde os dias que antecedem a Copa, as redes sociais têm registrado intensos debates sobre a postura de torcer pelo fracasso do Brasil na Rússia. Mais exaltados, alguns dos que adotam essa posição vêm criticando duramente quem manifesta seu apoio à Seleção.
O historiador e escritor Luiz Antonio Simas, vencedor do Prêmio Jabuti em 2016, foi alvo da "patrulha" nas últimas semanas. Em sua coluna no jornal O Globo e nas redes sociais, ele afirmou que iria torcer pela Seleção apesar de ser crítico ao distanciamento dos jogadores em relação aos torcedores e à gestão do futebol no país.
Foi a deixa para que começassem os ataques enviados publicamente e nas caixas de mensagem. Não raro, com xingamentos ofensivos. "É uma coisa muito chapada, de fazer uma ligação direta entre o momento do país e o futebol brasileiro. Não tem Cristo que resolva a crise do governo por uma vitória da Seleção. É tudo operando numa dualidade muito grande", critica.
A discussão sobre as possíveis apropriações políticas do esporte reacende um antigo debate: seria o futebol um instrumento de alienação? Ou, como afirmava o jornalista Millôr Fernandes, o "ópio do povo"?
Para Simas, essa visão é reducionista em relação ao significado do esporte no Brasil. O historiador entende o futebol como um campo que reflete as contradições da formação social brasileira, extrapolando a noção de simples divertimento.
"É um campo de projeções simbólicas constantemente em disputa. Pelo futebol, por exemplo, Leônidas da Silva se transformou no primeiro ídolo negro do Brasil e virou garoto-propaganda do chocolate Diamante Negro”, recorda.
"Outro caso é o rei da Suécia se curvando ao Garrincha, um índio fulniô, e ao Pelé, descendente de bantos, em 1958. A projeção disso na construção de afetos e pertencimentos transcende muito a lógica do pão e circo", argumenta.
O receio de utilização política do esporte no Brasil pode ter origem histórica. Desde sua criação, em 1914, a seleção brasileira esteve inserida em debates sobre a construção da identidade nacional e foi associada a projetos de país que se baseavam nessa ideia.
De acordo com o pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Irlan Simões, há poucos exemplos, em nível global, de um governo que tenha promovido tanto o futebol como a ditadura militar brasileira.
Prova desse empenho seria o fato de que, em 1970, quatro meses antes da Copa, o governo interrompeu as competições de futebol no país para garantir a boa preparação dos brasileiros, que haviam fracassado em 1966.
"Eles entenderam que o futebol era o principal instrumento de legitimação de seu poder e estímulo à ideia de Brasil gigante, potência mundial. O slogan 'ame-o ou deixe-o' lembra muito o futebol, o apoio acima de tudo", comenta Irlan.
Mas não é possível dimensionar até que ponto a conquista do tricampeonato mundial no México teve um papel na longevidade do regime. Fato é que o potencial de utilização do futebol com fins políticos parece ter diminuído com o passar dos anos.
A conquista do penta, em 2002, não contribuiu para uma vitória do PSDB, então no poder, nas eleições presidenciais daquele ano. Da mesma forma, os fracassos em 2006, 2010 e, especialmente, 2014, não foram obstáculos para vitórias do PT como situacionista.
"Setores mais ortodoxos da esquerda utilizam a ideia de que o torcedor grita gol enquanto é explorado. Mas você também está sendo explorado enquanto lê seus autores preferidos ou assiste a um filme iraniano", diz o pesquisador da Uerj.
"Como toda expressão popular, o futebol está inserido na indústria cultural. Achar que qualquer ideia associada a ele vai ser automaticamente assimilada é uma visão ultrapassada", conclui.
Embora seja contestável a tese de que o futebol pode ser utilizado como ferramenta de alienação, é inegável que a popularidade global do esporte o coloca no centro de interesses diversos.
Segundo o pesquisador Emanuel Leite Jr., da Universidade de Aveiro, por trás do encontro de povos que caracteriza a Copa do Mundo, há uma utilização do megaevento pelos países-sede para a construção de uma nova imagem de si próprios.
"O objetivo desses países é obter os resultados que desejam na esfera internacional pelo que o cientista político Joseph Nye cunhou como soft power (poder brando). Ou seja, a habilidade de influenciar pela atração, ao contrário dos meios bélicos e financeiros", explica.
Não à toa, para Emanuel, todos os países do Brics buscam sediar megaeventos. Ele chama a atenção para o significado político da ausência de lideranças ocidentais na cerimônia de abertura da Copa deste ano e do aperto de mãos entre o presidente russo e o líder saudita nas tribunas durante o jogo de estreia entre as seleções.
"Os países tinham relações estremecidas desde que ainda havia a União Soviética, pela proximidade da Arábia Saudita com os EUA e estão em lados opostos no conflito sírio", lembra.
"São os dois maiores produtores de petróleo do mundo e, em 2016, firmaram um acordo para garantir um preço que beneficie seus interesses. Neste ano, haverá uma reunião para renová-lo. Esse gesto mostra a dimensão política de um evento como a Copa: possibilita a um país se projetar internacionalmente para o estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais", conclui.
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