Traficantes de pessoas atuam livremente na Líbia
22 de junho de 2015Com uma bússola na mão, o líbio Zubeir, traficante de pessoas, passa os olhos sobre um mapa e mostra o roteiro a Abdullah, o cocapitão. É quase meia-noite, e o barco deve partir em algumas horas. Zubeir não estará na embarcação, e Abdullah tem pouco tempo para decorar o caminho. O pescador senegalês terá de explicar ao capitão, um migrante de Gâmbia, que direção tomar.
"Você consegue ver que a agulha está no 20 agora?", Zubeir mostra a Abdullah. "Nas três primeiras horas, tem que estar na linha 17."
Grosso modo, isso significa que o bote deve ir rumo ao norte. Zuara, perto da fronteira com a Tunísia, é a cidade líbia mais próxima da ilha italiana de Lampedusa. Isso faz do município um atrativo local de partida para migrantes que almejam chegar à Europa, e um dos mais movimentados locais de tráfico humano, apesar das autoridades locais insistirem que estão ativamente lutando contra o problema.
Salem Abuajeila, oficial do Exército, afirma que brecar os contrabandistas é assunto de alta prioridade, mas reclama não ter barcos, carros e pessoal suficientes para o trabalho. Assim como outros oficiais, Abuajeila conta que o tráfico humano vai muito além das fronteiras da Líbia, e que os militares não sabem quem são os grandes chefões.
Zubeir entrou no negócio em 2006, depois que encontrou, numa praia, cinco ganeses que haviam sido arrastados de volta para a costa líbia. Fazer a ponte entre migrantes e traficantes tornou-se um passatempo lucrativo para o então adolescente. Ele recebia dinheiro para cada novo "cliente" que trazia. Depois da revolução líbia, passou a atuar como traficante, comprando barcos e supervisionando as partidas.
Zubeir diz que embolsa mais de 17.600 euros com as tarifas cobradas num barco para 80 pessoas. Embora o valor possa ser considerado alto para um único homem, representa apenas uma gota no oceano dos 170 milhões de dólares gerados por traficantes líbios no ano passado, segundo a ONU.
Outras cidades costeiras também entraram no negócio. Apenas em Zuara, Zubeir diz que ao menos três dezenas de traficantes atuam como ele, bem embaixo do nariz das autoridades. "Nunca precisei esconder meu trabalho dos meus amigos e da minha família", diz.
Flagrado em trânsito
Oficialmente, nenhum traficante foi preso em Zuara este ano. Em Trípoli, a capital do país, as autoridades também não confirmaram prisão alguma, mas, de maneira entusiasmada, levam os jornalistas para ver os milhares de migrantes que foram detidos – nenhum líbio.
Nasser Azam é o chefe de uma nova unidade encarregada de cuidar da migração ilegal em Trípoli. Ele diz que no último mês, sozinho, prendeu dois mil migrantes sem documentação, em apenas duas semanas. Os que foram recentemente encarcerados entraram na mesma luta dos outros 25 mil já detidos em todo o país, conforme estimativas. O crime cometido, conforme Azam, é estar na Líbia ilegalmente. Ele acredita, porém, que as prisões servem para um propósito maior no combate ao tráfico humano.
"A maioria dos migrantes só está aqui de passagem, antes de conseguir dinheiro suficiente para ir à Europa", diz. "Prendendo o maior número possível deles, também estamos atrapalhando o negócio dos traficantes. Porque fica mais difícil trazer milhares de pessoas e encontrar um lugar para elas ficarem até que entrem em um barco. Assim, estamos tornando o trabalho deles [traficantes] mais difícil. E achamos que, se continuarmos trabalhando assim, podemos acabar com o negócio."
Sentados no que antigamente era um campo de futebol, sob ob sol escaldante, presos vindo da África Ocidental, como o senegalês Amine, dizem que a alegação é ridícula. "Dessa forma, o problema não vai acabar. Porque todo santo dia mais migrantes cruzam o deserto para chegar à Líbia. Enquanto eu falo agora, algumas pessoas estão vindo do Senegal rumo a Trípoli", diz.
Amine e outros dizem que foram presos porque estão no fim da cadeia alimentar, ou seja, são os mais vulneráveis e os mais fáceis de serem pegos. Encarcerar milhares, não fará nenhuma diferença enquanto os traficantes seguirem livres para trabalhar, dizem. "É preciso cortar o mal pela raiz. E eles [traficantes] são a raiz do problema também! Os traficantes estão trabalhando em parceria com as autoridades", reclama.
Tráfico e impunidade
Fora da prisão, uma frágil mulher grávida nigeriana, recém-libertada, oferece um exemplo de por que os migrantes acreditam que os traficantes são protegidos. Numa operação noturna, Mary, que está no país há mais de um ano, foi flagrada junto com o marido no apartamento em que o casal estava hospedado.
Com a primavera e a abertura da temporada de tráfico, ela conta que muitas pessoas começaram a chegar e partir. "Os migrantes chegavam, ficavam por volta de uma semana, e nós nunca mais os víamos", conta. A proprietária do apartamento em que estava operava uma espécie de hospedaria, onde migrantes ficavam até partirem rumo à Europa.
"No último mês, o dinheiro que ela pegava não era para o aluguel. Era muito mais. Esse dinheiro era para o 'empurrão'", diz Mary, referindo-se ao ato de enviar migrantes para o mar.
Na noite em que ela e outros foram presos, a unidade de Azam deteve apenas migrantes. A proprietária da casa, no entanto, segue livre. Histórias como essa levam Mary e outros a crer que as autoridades fecham os olhos para os líbios cúmplices no negócio.
Autoridades divididas
Chefe da nova força contra a migração ilegal em Trípoli, Azam admite que lutar contra os grandes criminosos seria um grande desafio. "Essas redes de tráfico são como grandes gangues. Não são apenas indivíduos líbios. É difícil ir a fundo, especialmente porque estamos [trabalhando] nisso há apenas algumas semanas", explica.
Mais tarde, um dos subordinados de Azam brinca que atacar os líbios envolvidos no tráfico desencadearia uma guerra civil – um comentário estranho considerando que já há uma guerra civil em curso na Líbia, mas que também evidencia um dilema central para as autoridades. Forças alinhadas ao governo em Trípoli estão sobrecarregadas devido à luta contra o Estado Islâmico, em Sirte, e à batalha que já dura um ano frente ao governo internacionalmente reconhecido no leste do país.
Nesse contexto, confrontar os traficantes em meio a eles e desmantelar suas redes abriria outra frente – e enfraqueceria as próprias forças combatentes. Diversos oficiais indicam que é algo que eles simplesmente não podem arcar.
"Todos os esforços que as autoridades líbias estão fazendo na luta contra o tráfico humano, no momento, são paliativos", opina, em Misrata, o coronel Reda Essa, que comanda a principal guarda costeira no leste da Líbia. "No momento, não podemos lidar com isso sozinhos", alega.
O trabalho de Essa, atualmente, é como tirar água de um navio que está afundando. Nas últimas semanas, a guarda costeira em patrulha deteve oito botes de borracha e um barco de madeira – uma pequena fração das embarcações que partiram da costa líbia no mesmo período.
De acordo com dados atualizados da Organização Internacional de Migração, mais de 58 mil migrantes chegaram à Itália este ano, e 1.819 morreram no caminho, fazendo da rota Líbia-Itália a mais movimentada e, de longe, a mais mortal do Mediterrâneo.
As poucas centenas de migrantes encontrados nas águas da Líbia pelo agrupamento do coronel Essa foram parar numa escola nos arredores de Misrata, que foi transformada num centro de detenção.
Atrás das portas de madeira trancadas, Lacina, da Costa do Marfim, espera para ir ao banheiro. Ele mora numa sala de aula desde o começo de maio. Agora que está num beco sem saída, ele quer ser enviado de volta ao país natal ou a qualquer outro da África Ocidental. Mas ele diz que já sabe o que faria a seguir: voltaria à Líbia e tentaria de novo.
Assim como muitos outros, Lacina não tem dúvidas de que ainda haverá traficantes prontos para ajudá-lo a chegar a seu destino dos sonhos: a Europa.