A manhã de 2 de janeiro de 2023 começou com a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ocupando lugares de destaque nos principais jornais do mundo. De ângulos diferentes, lá estava Lula sendo empossado pelos representantes do povo brasileiro no primeiro dia do ano de 2023.
Aquilo que poderia ter se tornado mais uma crise na democracia brasileira – a recusa de Jair Bolsonaro em passar a faixa para aquele que o sucederia no cargo –, se tornou uma das cenas mais bonitas da história do Brasil. Não foi por acaso que a imagem rodou e emocionou o mundo.
Muitos respiraram aliviados com a posse em si: uma festa que reuniu dezenas de milhares de pessoas, mesmo com diversas ameaças daqueles que não aceitaram a vitória de Lula nas urnas, obrigando a adoção de um protocolo de segurança rígido e cuidadoso.
Junto com esse alívio, veio a alegria e o maravilhamento de ver "representantes do povo brasileiro" subirem a rampa do Palácio do Planalto de braços dados com Lula. Francisco, um menino desportista de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. O cacique Raoni, uma das mais importantes lideranças indígenas no mundo. O metalúrgico Weslley Rocha. O professor de Letras Murilo de Quadros Jesus. A cozinheira Jucimara dos Santos. O jovem potiguar Ivan Baron, ativista anticapacitista. O artesão Flávio Pereira. E Aline Sousa, mulher negra que vem de uma família que há três gerações trabalha catando lixo. A faixa presidencial passou pelas mãos de todos eles, até chegar às de Aline, que foi quem vestiu Lula com o adereço.
Foi por meio de representantes de homens, mulheres, crianças, jovens, idosos, pessoas com deficiência, negros, indígenas, brancos, pobres e trabalhadores que Lula assumiu pela terceira vez o cargo de presidente da República. Um terceiro mandato que, assim como os outros dois, foi resultado de eleições democráticas.
História marcada por exclusão e marginalização política
Eu poderia simplesmente dizer como a escolha de empossar Lula pelas mãos do povo brasileiro é um aceno bonito e contundente dos compromissos de seu terceiro mandato. Boa parte deles anunciados nos discursos proferidos pelo presidente no dia 1º de janeiro, como a luta contra a fome e o desmatamento ilegal na Amazônia. O reconhecimento do poder estrutural do racismo e da necessidade de desmontá-lo. A exaltação do SUS como um dos mais importantes instrumentos democráticos do mundo. A pactuação com a ciência e seu bom uso em prol do bem comum. Outra parcela desses mesmos compromissos também se fez perceber nas escolhas dos ministros e ministras e no contrato que esses homens e mulheres apalavraram durante seu empossamento – no gabinete que, vale dizer, é o mais diverso de toda a experiência republicana.
Mas, como historiadora que sou, para mim foi inevitável traçar uma extensa linha histórica e recuperar um dos episódios mais importantes da história política do Brasil, o qual em 2023 completará 200 anos: a Assembleia Constituinte de 1823. Ainda que tenha sido marcada por uma série de conflitos e disputas políticas, a ponto de ter sido dissolvida antes da aprovação da primeira e mais longeva Constituição brasileira (de 1824), a Constituinte foi um instrumento fundamental na construção do Brasil soberano. E boa parte das discussões travadas nas muitas reuniões dessa Assembleia foram cruciais para definir quem poderia ser cidadão brasileiro, e como essa cidadania poderia ser exercida.
E não há a menor dúvida: num jogo anacrônico com o tempo é possível afirmar que nenhuma das pessoas que subiram a rampa com o presidente Lula, incluindo ele mesmo, teriam uma cidadania plena, podendo aventar ocupar o cargo máximo do Poder Executivo brasileiro ou qualquer outro cargo de maior prestígio. Fosse por questões de gênero, pertença racial ou recorte de classe, nenhum desses representantes do povo brasileiro poderia sonhar em estar no poder do seu próprio país. Um impedimento que, por meio de outras estratégias de exclusão e marginalização política, fez com que em boa parte da República brasileira esse sonho continuasse a ser impossível, até a redemocratização.
Refundação do Brasil
Por isso, mais do que colocar um ponto final simbólico na barbárie que marcou os últimos quatro anos, a posse de Lula representa uma espécie de repactuação brasileira. Uma tentativa de refundação do país. É quase como se estivéssemos vendo um novo mito fundador ser gerado ali, debaixo de nossos olhos.
É um sopro de mudança. Uma espiralada do tempo, no qual presente, passado e futuro se fundem e se confundem, apontando novas encruzilhadas.
Porque a escolha de empossar o presidente pelas mãos de sujeitos que representam a diversidade do povo brasileiro é também o reconhecimento dessa marginalização histórica, dessa cidadania incompleta que há dois séculos serve para que a política brasileira seja exercida e definida principalmente pelos representantes das elites do país, que, grosso modo, defendem única e exclusivamente os seus interesses.
Há uma transformação em curso. E, caso caminhemos por essa via, teremos uma democracia cada vez mais forte e plena, porque ela terá cada vez mais a cara desse povo brasileiro.
Das tantas bonitezas dessa posse (que imagino que dará arrepios e molhará os olhos de muitos por muito tempo), fico com a singela e poderosa constatação de Francisco, o menino negro de Itaquera que, ao conhecer Lula num evento beneficente e saber mais sobre a história do ex-metalúrgico, afirmou com alegria que ele mesmo também poderia vir um dia a ser presidente do Brasil.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
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