Uma prova de fogo para a democracia brasileira
1 de outubro de 2022Embora tenha tentado brevemente vender uma imagem "paz e amor", o presidente Jair Bolsonaro, em ampla desvantagem nas pesquisas de intenção de voto, parece seguir apostando suas fichas na desestabilização do processo eleitoral. A democracia brasileira vive o que analistas consideram um estresse inédito desde o fim da ditadura militar, e suas instituições serão testadas.
Em meio a repetidas investidas contra o sistema eleitoral, no dia 13 de setembro, Bolsonaro causou surpresa ao dizer, em um podcast, que aceitaria o resultado das urnas em caso de derrota. Analistas especularam que talvez o presidente modulasse o discurso para atrair eleitores moderados.
No entanto, menos de uma semana depois, no Reino Unido, Bolsonaro retomou a retórica habitual contra a segurança das urnas. A uma televisão brasileira, disse que "algo de anormal" terá acontecido dentro do TSE se ele não vencer a eleição no primeiro turno.
Na última quarta-feira (28/09), a campanha do presidente lançou uma ofensiva contra o sistema eleitoral. Seu partido, o PL, divulgou uma nota na qual afirma haver sérias falhas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que podem afetar o resultado das eleições, tendo como base auditoria feita pelo próprio PL. Pouco depois, o TSE divulgou uma nota oficial afirmando que as conclusões do PL são "falsas e mentirosas, sem nenhum amparo na realidade".
À noite, em sua live, Bolsonaro ameaçou determinar às Forças Armadas o fechamento de seções eleitorais, com base em um factoide. O presidente insinuou que eleitores vestindo verde e amarelo seriam proibidos de votar, embora não tenha havido nenhuma decisão do TSE nesse sentido. "Vou determinar às Forças Armadas, que vão participar das seguranças, qualquer seção eleitoral em que for proibido entrar com a camiseta verde e amarela, não vai ter eleição naquela seção", ameaçou Bolsonaro.
No último debate entre os presidenciáveis, organizado pela TV Globo nesta quinta-feira, Bolsonaro fez mais uma breve pausa em sua ofensiva antidemocrática. E a postura golpista do presidente em relação ao processo democrático praticamente não foi abordada; apenas a candidata Soraya Thronicke (União Brasil) questionou se ele pretendia liderar um golpe caso seja derrotado, mas Bolsonaro se esquivou.
Assim como o presidente, apoiadores questionam pesquisas
Embora Bolsonaro alegue ter a maioria dos eleitores ao seu lado, citando o que chama de "datapovo", as pesquisas dos institutos mais respeitados, como Ipec e Datafolha, mostram o seu oponente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na frente, com ampla vantagem. Somente o petista tem condições de liquidar a eleição já no primeiro turno, segundo os levantamentos.
Entre os seguidores do presidente, é generalizada a crença no descrédito dos institutos de pesquisa, bem como do sistema eleitoral.
"Essas pesquisas são mentirosas", afirmou o comerciante Ezequiel Siqueira no desfile cívico-militar do 7 de Setembro no Rio de Janeiro, palco de um comício do presidente em busca da reeleição. "O brasileiro que está na rua hoje é Bolsonaro, aqui não tem um petista. Então, como o Lula está lá em cima na pesquisa? Somos um número muito maior, expressivo", disse.
Ezequiel, que veio de Juiz de Fora para participar do 7 de Setembro no Rio, defende abertamente uma reação caso o resultado das urnas mostre uma vitória do petista. "Eu vou ser sincero: eu acho que a gente tinha que quebrar o Brasil, quebrar tudo."
A caminho do festejo patriótico, ornamentada com um arco verde e amarelo, Denise Wanderley dizia acreditar que Bolsonaro só perde se houver fraude nas urnas eletrônicas, motivo de preocupação para a aposentada.
"Não tem um lugar aonde ele vá que não seja aclamado pelo público. Eu não vou aceitar. Dou minha vida pelo Bolsonaro", falou, com endosso de familiares e amigos que a acompanhavam.
Instituições sob pressão
Embora não seja possível prever a reação do presidente e seus apoiadores no caso de um resultado desfavorável nas urnas – seja a derrota para Lula no primeiro turno ou a ida para um segundo turno em ampla desvantagem –, há indícios claros de que as instituições serão pressionadas.
"As instituições brasileiras têm atuado de maneira deficitária no controle dos atos do Executivo, mesmo os mais arbitrários", afirma Eloísa Machado, professora de Direito Constitucional na FGV Direito SP.
A advogada pondera que uma eventual insurgência golpista exigiria uma reação mais rápida, contundente e coesa das instituições judiciais e políticas, a qual não se observou até aqui.
"Porém, há leis, procedimentos (como a Lei de defesa das instituições democráticas) e atores (como as cortes superiores e o Congresso Nacional) aptos a reagir, ou seja, existe uma institucionalidade para isso", diz Machado.
A professora da FGV avalia que a sociedade civil mostrou ampla mobilização e adesão à pauta democrática, rechaçando qualquer tentativa de golpe. Uma das principais demonstrações de força foi a leitura da Carta pela Democracia em diversas capitais, em agosto.
Aos 83 anos, o advogado José Carlos Dias foi um dos articuladores da mobilização. Ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique e presidente da Comissão Arns, ele defendeu mais de 500 presos políticos durante a ditadura militar. Em entrevista recente à DW Brasil, ele disse ter confiança nas instituições.
"Eu acredito que nós temos que confiar na posição firme dos governadores, dos parlamentares sérios − graças a Deus, eles existem − e principalmente do STF e do TSE. Essas instituições todas estão muito fortes para defender a democracia brasileira", declarou.
Para o ex-ministro, um intento golpista de Bolsonaro seria escandaloso perante as instituições brasileiras e à comunidade internacional. "Não vejo como isso pode acontecer, mas que eu tenho receio, tenho", disse. "Ele tem instrumentos, milícias e parte das Forças Armadas, que poderão apoiar esse gesto de loucura."
Para o pesquisador Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as eleições presidenciais poderão representar um teste para a democracia brasileira, equivalente à invasão do Capitólio nos EUA, em 6 de janeiro de 2021.
"As instituições estão super estressadas e pressionadas, mas foram capazes de conter isso até aqui. Temos que garantir que elas consigam resistir a um teste como o 6 de janeiro brasileiro, que irá provar se nossas instituições teriam essa capacidade. O principal ponto de atenção seriam as Forças Armadas e as forças policiais", avalia.
Exército sinaliza neutralidade
Uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo nesta sexta-feira informa que o Alto Comando do Exército teria firmado posição em prol do resultado das eleições presidenciais. A posição pode reduzir o impacto de uma polêmica auditoria das urnas pelos militares, que não deverá mais ter a finalidade de atestar a confiança nas eleições.
Uma possível insurreição golpista incentivada por Bolsonaro seria a participação de policiais de demais agentes das forças de segurança é um dos principais fatores de preocupação. Para o pesquisador Arthur Trindade, que coordena o Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (NEV-UnB), a possibilidade é remota.
"O Poder Judiciário dispõe de leis e outros instrumentos legais para processar e punir policiais amotinados. E de fato, policiais amotinados têm sido punidos. Entretanto, ao longo das últimas décadas, o Congresso Nacional tem sistematicamente anistiado os policiais insurgentes e anulado as punições. Esse cenário mudou durante o governo Bolsonaro", explica.
Em 2019, policiais militares do Ceará se amotinaram contra o governador, com apoio explícito do presidente. Governadores de 19 estados se uniram para impedir qualquer tentativa de anistiar os revoltosos. Após esse episódio, juízes e governadores aumentaram sua capacidade de coibir motins e insurreições.
"Dificilmente as polícias militares se envolveriam nesse tipo de movimento insurgente. As policiais têm dado demonstrações de cumprimento das suas obrigações funcionais e subordinação dos governadores de estados", avalia Trindade.
O pesquisador da UnB lembra que, nos preparativos para o Dia da Independência em Brasília, Bolsonaro cobrou do governador Ibaneis Rocha, seu aliado, a liberação de caminhões da polícia para participar do desfile – o que é proibido por lei. Rocha se opôs. Apesar da forte adesão ao bolsonarismo, a Polícia Militar seguiu à risca as ordens do governador.
"Desta vez, não haverá anistia"
A professora Eloísa Machado, da FGV, explica que as forças de segurança pública são subordinadas ao poder político constituído, e qualquer insurgência representará um crime contra as instituições democráticas, passível de imediata repressão (como a destituição dos cargos de comando) e responsabilização, com atuação do sistema de justiça e das corregedorias internas.
"O caso das Forças Armadas é ainda mais evidente: a Constituição repudia qualquer interferência militar na política e qualquer comandante poderá ser responsabilizado por atos golpistas, seja na Justiça comum e também perante a Justiça militar", afirma a advogada.
Para a professora, uma parte das Forças Armadas é desleal à Constituição desde 1988. "Mas é bom que saibam que, desta vez, não haverá anistia".
Machado afirma que a ameaça do presidente Bolsonaro de fechar seções eleitorais com uso das Forças Armadas configura crime eleitoral e abuso de poder político.
"Sem mencionar eventuais repercussões criminais, insertas na Lei de Defesa das Instituições Democráticas. Tudo fica ainda mais grave se pensarmos que o candidato a vice-presidente [o general da reserva Walter Braga Netto] é militar e que as Forças Armadas fazem parte deste governo desde seu início", conclui.