Entrevista
26 de julho de 2007A obra do carioca Jorge Mario Jáuregui é uma das poucas obras de arquitetura presentes na "documenta" deste ano. Em Kassel, DW-WORLD.DE conversou com o arquiteto sobre seu trabalho de urbanização de favelas no Rio de Janeiro, considerado obra de arte pelos curadores da "documenta" 12.
DW-WORLD: Como você está participando da documenta 12?
Jorge Mario Jáuregui: Eu participo, aqui, com este espaço em que apresento registros do processo de concepção de como se gera uma idéia em termos espaciais, urbanos principalmente, mas também arquitetônicos. Depois participo, juntamente com a Faculdade de Arquitetura de Kassel, de um workshop. Aí vai se definir um grupo de estudantes que participará da construção do meu objeto, que é o terceiro momento da minha participação na "documenta". Vamos construir um objeto no parque do Castelo Wilhelmshöhe.
O que este objeto tem a ver com seu trabalho nas favelas do Rio?
É um ambiente de 3 por 5 metros, com altura de 2,26m, que eu "li" há alguns anos atrás em uma favela do Rio, o Vidigal, quando um jovem casal me convidou, à sua casa, para me mostrar um vídeo que fizeram sobre a vida na favela. Nesse espaço, eu me senti muito bem. Íamos subindo a escadaria do Vidigal e ele abriu uma porta, a única abertura do ambiente, e disse "É aqui".
Ele me falou que havia construído isso embaixo da casa da tia. Lá havia uma cama, como que japonesa, móveis baixinhos, e, em um cantinho, um módulo de 1x1m onde estava o banheiro. Com a porta de sua vizinha aberta do outro lado, ele falava, sentado na cama, comigo e com a vizinha. Era um espaço contínuo, o público e o privado fluindo facilmente. Eu comecei a pensar na questão de que tamanho não é fundamental, mas como se faz a percepção do espaço de forma racional e corporal, ou seja, como você interage com o espaço.
E a relação do objeto com a documenta?
Comecei a pensar nos temas da documenta: A Migração da Forma, a Relação com a Modernidade e a questão "O que é a 'mera vida'"? – temas que eu interpreto da minha maneira. O espaço que me interessa é o espaço que não tem nem interior nem exterior, mas um contínuo.
A construção tem a ver com a Migração da Forma, e minha relação com a modernidade é através da busca do essencial, que vi naquele loft da favela que tinha tudo o que precisava na sua essência. A terceira questão, "O que é a mera vida?", tem a ver com a vulnerabilidade com a vida na favela. A carência da saúde, da segurança, a vulnerabilidade no espaço físico. É difícil andar pelas escadarias com suas diferentes alturas de degraus.
Como um projeto urbanístico pode restaurar as condições de convivência na favela?
A vida na favela é de alta insegurança, provocada, primeiramente, pela arbitrariedade da polícia, depois, pela do traficante. Tudo isso fruto da ausência e negligência, durante várias décadas, do poder público, que deu no que deu, ou seja, o surgimento de uma autoridade paralela por falta da autoridade real do poder público. Para restaurar as condições de convivência na favela é necessário instaurar a trégua social.
Um projeto urbanístico funciona como um instrumento para a trégua, para depor as armas, através de uma atitude muito mais inteligente de negociar o conflito entre o público e o privado, o comunitário e o individual.
Mas isso não lembra a idéia de Le Corbusier Arquitetura ou Revolução, ou seja, de que a arquitetura poderia modificar o social, hoje muito contestada?
Hoje, somos bem menos pretensiosos em relação à idéia que tinha Le Corbusier. Não se trata mais de Arquitetura ou Revolução, mas da transformação do que existe. A revolução não há mais. O que hoje podemos é recompor as diferenças, criar uma condição de diálogo dentro da hibridação cultural, estética, econômica, ideológica que o campo contemporâneo determina.
Até que ponto os habitantes da favela aceitam sua condição urbanística. Será que eles não prefeririam os padrões do urbanismo oficial – a rua, a praça, a casinha com jardim?
A questão não é somente a favela. A questão é da sociedade contemporânea, tanto para um habitante do Leblon ou Ipanema, como para um da Rocinha ou do Complexo do Alemão. A questão é de que forma se pode sair do modelo mercenário imposto pela especulação imobiliária que controla aquela desgraça que se chama Barra da Tijuca, por exemplo, com um mar de carros dividindo o espaço entre os edifícios.
No diálogo instaurado por um projeto urbano, temos que permitir que os modelos que se trazem carregados na memória de cada sujeito possam ser modificados. Entre a favela e a Barra da Tijuca, temos que ser capazes de construir um espaço que permita uma nova idéia de habitabilidade no planeta, em particular em um local ainda mítico como o Rio de Janeiro, onde ainda se pode viver dentro da natureza, porque sempre o perfil da natureza ainda está por cima daquilo que o homem é capaz de construir.
Parece que o símbolo de sua exposição, aqui na documenta, é Brasília e Rio juntos. É o traço de Lúcio Costa com a paisagem do Rio de Janeiro. O que você quer dizer com isto?
Lúcio falava de massa verde e massa construída, de que tinha-se que buscar a relação entre as duas. A minha leitura disto é que o Rio continua sendo um modelo "ideal", onde ainda é possível construir lugares, onde se possa viver em uma relação inteligente, não predatória, com a natureza.
Em que favelas você já atuou?
Eu já fiz 25 favelas no Rio de Janeiro. Desde a primeira, Fernão Cardim, em 1994, depois Salgueiro, Vidigal, Rio das Pedras. Hoje, estão muito maltratadas e eu nem vou visitar. O poder público que as construiu não colocou nenhum tostão em sua manutenção. A população da favela não tem meios econômicos para sua manutenção. O dinheiro que têm é para manter sua precária residência e para comer, obviamente. É função do poder público garantir que o bem público seja bem conservado.
Como você vê a função dos novos edifícios que projeta para as favelas?
O projeto urbano busca articular a diferença entre o formal da cidade e o informal da favela. É a função de cada edifício que introduzimos, como os edifícios habitacionais para a relocalização de pessoas retiradas para se abrir ruas. Quando você introduz um novo edifício, cria-se um novo espaço de convivência e uma nova porta de entrada para o morro. Cada edifício introduzido funciona como um monumento, porque tem a função de representar a dimensão pública dentro do privado.
Na favela, há de tudo, menos o público. Tudo é privado e o que não é privado, não é de ninguém. A rua é para jogar o lixo e eu posso avançar e construir como quiser.
Mas a Quadra do Salgueiro não é um espaço público?
Sim, mas é um espaço interiorizado. Na favela, não há o conceito de espaço público. Existem pontos onde está o baile funk, a escola de samba, a escola, etc. que não constituem parte de um território que se pode chamar espaço público. Espaço público é um contínuo que permite várias atividades. Isto está bem claro na planta do Salgueiro, onde o coração da vida comunitária era tomado pelos traficantes, porque o poder público não chegava aqui, nem lixo, nem ambulância, nem a polícia.
Com a extensão da rua, a acessibilidade e a formalização deste espaço com atividades esportivas, culturais, comerciais, isto se transforma e se abre para a chegada da cidade formal, articulando a comunidade com a cidade e tornando este lugar acessível, aberto para outras possibilidades de vida.
Não há resistência contra tais projetos por parte dos traficantes?
A população sempre quer melhorias, urbanização. Os traficantes são uma força paralela que não quer que este lugar seja acessível, mas que também não pode ser opor à comunidade. É uma luta de poder entre os traficantes e a comunidade.
Como você estuda a favela antes de intervir?
O ponto de partida é a leitura da estrutura do que já está lá, reconhecendo os locais onde as pessoas se encontram ou um lugar que tem potencial para se transformar em praça, onde há serviços importantes como o núcleo da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), já que o lixo é um problema gravíssimo a ser resolvido, junto com as novas vias de circulação para veículos, e senão para veículos, pelo menos para pessoas em escadarias agradáveis, bem dimensionadas, incluindo o verde.
Como em uma cidade grega ou italiana, onde não há circulação de carros, mas é muito agradável andar pela escadaria com uma paisagem maravilhosa como a do Rio de Janeiro.
Sua forma de lidar com a favela lembra a intervenção de Brunelleschi, em Florença, ao introduzir a cúpula da catedral em um tecido medieval dando início ao Renascimento?
Sim, é possível estabelecer este paralelo. O que é o monumento? É aquilo que a comunidade define como sua máxima representação, como síntese de sua condição de vida conjunta. É aquilo que tem a presença simbólica e material na mesma coisa, símbolo e matéria juntos. Na favela, qualquer edifício que introduzimos, mesmos pequenas intervenções como banheiros e vestiários comunitários junto a um campo de futebol, tudo se transforma em monumento. Por quê?
Porque é feito pelo poder público, em nome do poder público. Quando ganho um concurso, eu sou a mão que viabiliza a intervenção do público no privado. O gesto do projeto é de absoluta responsabilidade, porque vai introduzir um monumento em um lugar que vai representar o poder público. Mesmo muito pequenininho, um quiosque, um abrigo de ônibus, não é qualquer edifício, isto já é um monumento.
O que você quer dizer quando escreve "Sublinhar a dignidade do público, cenário aberto à vida civil. Fundamento igualitário da democracia. Dignidade representativa, condição coletiva e solene"?
Isto é que é um projeto de intervenção urbana em uma comunidade carente, em uma favela, mas não só nela.
E isto é arte?
Isto tem a ver com arte, sem dúvida. Isto é uma forma de entender a arte e eu estou, realmente, muito feliz de que a favela tenha ganho um lugar numa exposição de arte internacional.