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"Vacinagate": o escândalo dos furadores de fila do Peru

22 de fevereiro de 2021

Quase 500, incluindo figuras públicas conceituadas, passaram à frente na prioridade da vacinação contra a covid-19. Além de apuros sanitários, políticos e econômicos, peruanos enfrentam agora crise moral.

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Homem segura jornal com manchete: "Terremoto, vacinação antecipada"
Escândalo abala ainda mais confiança dos peruanos em seus políticosFoto: Ernesto Benavides/AFP/Getty Images

O ex-presidente, sua esposa, seu irmão, a ministra do Exterior, a ministra da Saúde, seu motorista, o marido de uma congressista, dois reitores de uma universidade, agroindustriais, até o embaixador do Vaticano e arcebispo: a lista dos furadores da fila da vacinação no Peru abarca 487 nomes.

Todos receberam o imunizante contra a covid-19 da empresa chinesa Sinopharm antes da hora, de forma secreta e ilegal, e um quarto deles é funcionário do Estado peruano. "Vacinagate" é o sensacionalista apelido dado pelas mídias nacionais ao escândalo.

E assim como o caso Watergate, em 1972, envolvia mais do que o assalto à sede do Partido Democrata americano, em Washington, também na república andina trata-se de muito mais do que o delito trivial de passar à frente do pessoal de saúde.

Pois se, mesmo antes da crise do coronavírus, a confiança dos peruanos em seus políticos já era muito baixa, devido a numerosos escândalos de corrupção, agora ela tende a zero. Isso, justamente em plena pandemia do século, e a menos de dois meses das eleições presidenciais e legislativas de 11 de abril.

Desculpas deslavadas

"Os peruanos estão muito decepcionados. Antes tínhamos situações mafiosas nos governos, com conexões com o narcotráfico. O povo esperava que os novos responsáveis fossem diferentes", afirma Mayte Dongo, historiadora e cientista política da Universidade Católica do Peru, em Lima. Contudo o pior talvez seja que esses "espertalhões" servem de espelho para a população: "Muitos peruanos possivelmente teriam agido exatamente assim."

Em agosto de 2020, a farmacêutica chinesa Sinopharm realizou um amplo estudo de fase 3 de seu imunizante, em 125 países, inclusive o Peru. Embora o produto já esteja em uso na Sérvia, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda está estudando a autorização.

Após o estudo no Peru, sobraram 3.200 doses da vacina. E muitos políticos se aproveitaram. "É claro que a população associa o escândalo ao novo governo", diz Dongo. Não com Francisco Sagasti, eleito chefe de Estado interino pelo Congresso Nacional, em meados de novembro. Mas sim com a ministra da Saúde, Pilar Mazzetti, e a do Exterior, Elisabeth Astete. Ambas já se demitiram e estão ameaçadas de até oito anos de prisão.

Talvez os peruanos tivessem perdoado, até certo ponto, as furadoras de fila, mas não o descaramento com que elas tentaram se eximir da culpa. Astete argumentou que, "como ministra do Exterior, eu não podia me dar ao luxo de ficar doente". Porém sua colega de gabinete Mazzetti foi ainda mais longe.

"Nós, que encabeçamos as instituições, devemos dar o exemplo e esperar decentemente pelo nosso momento. Na verdade, minha vez é na semana que vem, mas o capitão é o último a abandonar o navio, certo?", alegou numa coletiva de imprensa, dez dias atrás. Só que, poucos dias depois, a responsável pela Saúde teve que admitir que fora a primeira a saltar para o bote salva-vidas, vacinando-se às escondidas.

Dongo não está especialmente surpresa com a conduta dos políticos: "Antes de a vacina chegar, os cidadãos já estavam dizendo: 'Prestem atenção com a vacina, pois tem gente que vai furar a fila'", conta a cientista política.

Ela teme consequências sérias para o próximo pleito. "Muitos políticos jogaram fora a confiança depositada neles, e possivelmente já vamos sentir isso em abril, nas eleições. Como a população está farta, ela poderá eleger um candidato sem nada a ver com o establishment. E isso é perigoso, pois o populismo pode se aproveitar."

Ex-ministra peruana da Saúde Pilar Mazzetti e embaixador da Espanha Alejandro Alvargonzález
Ministra da Saúde Pilar Mazzetti (dir. ao lado do embaixador da Espanha Alejandro Alvargonzález) renunciou após "Vacinagate"Foto: Paolo Aguilar/Agencia EFE/imago images

Peru não é caso isolado

Cabe notar que o ocorrido no Peru também acontece diariamente pelo mundo afora. Na Alemanha e na Áustria, os prefeitos passam à frente para tomar a vacina anti-covid; na Espanha, a liderança militar e o bispo de Maiorca; na Polônia, o ex-primeiro-ministro; no Reino Unido, um parlamentar conservador.

Assim como, na encomenda dos imunizantes, os países industrializados tratam de se garantir, sem consideração pelos demais. Na vacinação são os representantes das camadas superiores que usam suas conexões para receber logo a sua dose.

Ainda assim, para o neurobiólogo Edward Málaga-Trillo o caso do Peru é ímpar. "Por um lado, a dimensão é muito maior; por outro, não só políticos, mas também cientistas e médicos estavam entre os vacinados, gente que deveria saber melhor que ninguém a fronteira ética que estava ultrapassando. Acima de tudo, porém, isso acontece num país que chegou a ter o maior número de mortos em relação à população, que sofreu com o vírus como poucos outros", pondera.

Até o momento, mais de 44 mil já morreram do Peru em consequência de uma infecção com o vírus Sars-Cov-2. Isso coloca o país, com seus 33 milhões de habitantes, na oitava colocação dessa triste estatística da pandemia. O "Vacinagate" é um tapa na cara também para médicos e pesquisadores.

Danos à ciência

Para Málaga-Trillo, que atuou como pesquisador na Alemanha por mais de dez anos e esteve no front avançado durante a primeira onda da pandemia, o caso chega a ser uma "ofensa pessoal". Até o ano 2000, o neurobiólogo se dedicava à pesquisa de base sobre a doença de Alzheimer, com 3 mil peixes-zebra, em seu laboratório.

Com a eclosão da pandemia, ele mudou de foco, desenvolvendo testes moleculares rápidos de coronavírus. Para tal, assume um grande risco pessoal, juntamente com sua equipe: enquanto a maioria dos peruanos permanece em casa, em confinamento, os jovens pesquisadores vão às ruas e trabalham dia após dia com amostras do vírus.

"E aí você fica sabendo que alguns privilegiados, que não estão expostos a nenhum perigo, tomaram a vacina. Dá um sentimento de que todos os sacrifícios que se faz pelo país não são valorizados, e na verdade de nada valem."

Para Trillo, o "Vacinagate" é a quarta crise que atinge simultaneamente o Peru: à pandemia e aos apuros econômicos e políticos, junta-se agora uma crise moral. "Mesmo o Ministério da Saúde, que tem a responsabilidade pelo combate à pandemia e deveria ser um exemplo, não coloca seus interesses pessoais em segundo plano. Ou seja, as pessoas que deveria proteger a população peruana pensam primeiro em si."

As consequências são devastadoras, em especial para o centro de pesquisas do neurobiólogo: sua Universidade Peruana Cayetano Heredia era considerada instituição de elite na pesquisa da pandemia, altamente conceituada nos meios científicos. No entanto, como os testes para a Sinopharm foram realizados lá, agora ocorrem renúncias em massa, verbas de pesquisa estão retidas, possivelmente não se poderá mais realizar estudos clínicos na universidade.

"Essas pessoas também sujaram a ciência, esse é um golpe duro para o futuro do combate ao coronavírus", queixa-se Málaga-Trillo. Certo está que o "Vacinagate" serve, desde já, como uma advertência global contra os furadores de fila da vacinação. Contudo ele teme que este só seja o começo do escândalo. "A coisa ainda não acabou. Estamos todos ansiosos para saber que nomes e surpresas os próximos dias ainda vão trazer", acrescenta.