O artista e seu NBP
4 de maio de 2007Ricardo Basbaum consta da lista mínima, até agora divulgada, de artistas que terão suas obras na documenta 12. Seu projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? vem sendo desenvolvido desde 1994, em várias cidades de diversos continentes.
No website do projeto, Basbaum, como "propositor", convida quem se habilitar a fazer uso do objeto NBP (Novas Bases para a Personalidade), uma peça de aço pintado, de 80 x 125 x 18 cm. O indivíduo, grupo ou coletivo interessado em participar tem que estar apto a "levar para casa" o objeto, que pode ser visualizado no site.
Hoje, em colaboração com a documenta 12, há 20 objetos em circulação no Brasil, América Latina, Europa e África. Cada experiência é cadastrada no site, que além de registro e banco de dados, funciona como uma plataforma de reflexão sobre a própria obra e temas afins.
Leia abaixo a entrevista de Ricardo Basbaum à DW-WORLD.DE, em que o artista defende o NBP como portador "de elementos híbridos de várias procedências" e explica sua idéia de produzir, com seu projeto, "uma relação dialógica de questionamentos e provocações mútuas, com a finalidade de uma conversa infinita".
DW-WORLD.DE: De início, você partiu de um único objeto físico NBP, embora já tenha dito que novos ou vários pudessem surgir. Hoje, já há 20 novos objetos produzidos circulando em três continentes. Por que essa opção pela reprodutibilidade da obra, o que implica um não à singularidade (autenticidade?) deste como objeto único?
Ricardo Basbaum: Nunca parti de um "único objeto físico": o projeto já se iniciou com o objeto concebido como "múltiplo em tiragem aberta", ou seja, podendo ser construídos quantos objetos se fizerem necessários a cada momento (inicialmente, foram planejados 10 objetos).
O fato de haver apenas um objeto em circulação no período de 1994 a 2005 se deveu apenas a fatores econômicos, pois apesar de ter buscado recursos, no Brasil (em 1995 e 1998), junto a dois fundos de financiamento de projetos, tive os pedidos negados e nunca consegui o financiamento necessário. Somente agora, em colaboração com a documenta 12, consegui apoio para esta expansão do projeto.
Neste projeto especificamente não interessa o objeto único, pois este seria imediatamente fetichizado como "original", envolto em uma "aura de autenticidade" da qual o projeto quer se distanciar. Enquanto múltiplo, é possível afirmar que os participantes têm em mãos rigorosamente o mesmo objeto para desenvolverem suas experiências, sem as marcas da falsa singularidade do objeto único. Assim, o projeto é de certo modo sempre reiniciado, carregando apenas as marcas da memória construída a partir de documentos e registros.
Além disso, afinal de contas, o objeto não é o elemento mais importante de todo o projeto, mas apenas aquele que deflagra o processo: a cada experiência ou evento realizado o objeto passa para um segundo plano, trazendo para o primeiro plano as redes de relações produzidas pelos eventos e situações propostas.
Sua proposta artística parte do princípio de uma "autoria compartilhada". Você chegou a ter "más experiências"? Lamentou, em alguma ocasião, ter abandonado a certeza de uma obra concluída? Desconfia ocasionalmente do Outro, quando ele se apropria de um NBP?
Veja bem, a relação que procuro desenvolver em reação às respostas dos participantes e suas propostas também é um dos elementos envolvidos no projeto: procuro positivar qualquer resposta, portanto não há o que você chama de "má experiência" – digo isso partindo do pressuposto de que o participante está assumindo a responsabilidade por suas ações.
Quando entrego o objeto para um participante, solicito apenas duas coisas: que assuma a responsabilidade das ações realizadas; e que se comprometa a tornar estas ações públicas, enviando documentação para o website do projeto – no guia com instruções aos participantes, escrevo: "Você pode fazer o que quiser com ele [o objeto]. Use-o como quiser, da maneira que achar melhor".
Mas esta total "disponibilização" sem restrições não significa que eu "concorde" com todas as proposições realizadas. Um dos traços que mais me interessa no projeto é a produção desta assimetria entre propositor e participante: os papéis nunca coincidem e assim é produzida uma relação dialógica de questionamentos e provocações mútuas, com a finalidade de uma "conversa infinita".
Inclusive, há uma interessante inversão de papéis: se inicialmente eu me coloco como propositor, que oferece o objeto a um participante, provocando-o, quando recebo a documentação da experiência realizada é o participante que se torna propositor, enquanto procuro processar a experiência realizada enquanto participante que aceita ser provocado.
Você reafirma que, por ser um work in progress, o projeto "Você gostaria de participar de uma experiência artística?" pode (ou deve?) persistir para além "do tempo de vida do autor". Até que ponto o objeto é, de fato, autônomo o suficiente para mover-se sem autoria, sobrevivendo apenas graças à própria história?
A possibilidade de uma sobrevida para além "do tempo de vida do autor" se coloca para qualquer obra de arte – há o tempo próprio do poema, em todo o seu mistério, com seus segredos e revelações: trata-se de uma modalidade de produção de pensamento de consumo lento e complexo, que se projeta para além do tempo apressado da pressão econômica da vida cotidiana. Todas as obras de arte, filmes, livros, músicas interessantes e provocadoras têm – felizmente – sobrevivido ao (curto, porém intenso) tempo de vida de seus autores.
No caso do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? há ainda uma peculiaridade: o fato de partir de um objeto múltiplo de edição ilimitada indica que sempre um novo objeto pode ser produzido, a qualquer tempo, isto é, tanto aqui e agora como "além do tempo de vida do autor". Entretanto, não há qualquer garantia desta sobrevida – trata-se de algo que somente ocorrerá se, como você diz, a própria história do projeto assim indicar...
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Na trajetória do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, parece claro seu desejo de dar voz ao discurso sobre a obra, de abrir espaço para a "constituição de um pensamento coletivo". Esta postura permanecerá atual durante a documenta? Haverá alguma reflexão contínua sobre a obra durante a mostra?
Sim, existe o interesse concreto por um "pensamento coletivo", na medida em que o espaço de funcionamento e reverberação da obra de arte é sempre resultado da mobilização de muitos – não existe a decisão de "ser" ou "atuar" como artista enquanto a simples decisão de um sujeito individual, isolado.
Um dos aspectos mais fascinantes do campo da arte é a contínua mobilização de redes de apoio ou repulsa de certas ações ou tendências, dinâmica esta que caracteriza a dimensão política do chamado circuito de arte em suas diversas facções ou segmentos (fator em geral obscurecido ou recalcado pela discussão de uma arte pretensamente "universal", absolutamente verdadeira, bela ou exemplar, independente de sua inserção contextual).
No caso de meu projeto específico de trabalho apresentado na documenta 12, acredito que uma de suas características é a de constituir um corpo coletivo de ação e pensamento, a partir das experiências realizadas pelos participantes e postadas no website.
Além disso, a seção de "comentários" – presente no mesmo website – foi planejada para incorporar textos de autores diversos, que aos poucos contribuem para a construção de um pensamento polifônico e conjunto, apontando para diversas direções.
Em ensaio, Maria Moreira cita que seu projeto contém um elemento fundamental à cultura brasileira: a experiência de "repersonalização". Gostaria que você explicasse melhor isso que a ensaísta chama de "estratagema de convívio" da sociedade brasileira, supostamente localizado na sua obra.
Penso que esta pergunta deve ser direcionada à autora Maria Moreira, mais do que a mim. No entanto, acredito na importância de enfatizar a especificidade das inscrições culturais – mas estas se dão a partir do caldo cultural múltiplo, dentro do qual o artista está mergulhado (sem esquecer que hoje esta inserção se dá enquanto pertencimento a uma esfera comunicacional e tecnológica globalizante), sendo de percepção mais difícil e complexa.
O mais interessante é se pensar as ferramentas da arte contemporânea sendo diferentemente contaminadas em cada uma de suas inscrições culturais, revelando a importância de uma "antropologia" que estaria atenta às interfaces entre arte e cultura, revelando o quanto os campos se contaminam reciprocamente.
É claro que a arte se inscreve culturalmente; mas, na maioria dos casos, os aspectos dessa inscrição não são tematizados, reforçando uma pretensa autonomia das linguagens frente às inscrições culturais específicas. Por outro lado, seria incorreto reduzir a vocação dinâmica da arte contemporânea à mera ilustração de elementos culturais dos quais seria simples portadora: é mais interessante perceber a obra como portadora de elementos híbridos de várias procedências, causadores de choques culturais diversos.
A arte contemporânea – e antes, a arte moderna – pode ser considerada veículo privilegiado de uma vocação antifundamentalista do pensamento. Talvez a contribuição da cultura brasileira a essa conversa se dê a partir do reconhecimento de sua matriz fundadora enquanto agregado cultural – ou seja, a beleza da mistura contra a pureza reducionista.
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Uma crítica feita [pelo ensaísta Victor da Rosa] no Brasil ao NBP é a de que ele se resumiria a "entretenimento para especialistas", sem gerar interatividade real ou tensão, sem quebrar ordens ou hierarquias, sem diluir genuinamente a autoria da obra. Como parte integrante da documenta, o NBP se afirmaria, mais do que nunca, como "entretenimento para especialistas" por excelência?
Não, de maneira alguma! Acredito que a obra de arte tenha uma vocação "pública", no sentido de ser lançada diretamente e sem rodeios em direção à alteridade, em toda a sua potência – o espaço de fruição da obra é necessariamente coletivo e generoso, aberto aos encontros e desencontros próprios da vida e da existência.
Isto vai em direção contrária à postulação da obra de arte enquanto apenas "entretenimento" e "diversão" – sem dúvida, a visão dominante no circuito da cultura comercial e do consumo. Aqueles que acusam a arte contemporânea de "entretenimento para especialistas" na verdade se recusam ao embate direto com esta obra de arte e com o corpo de questões trazido por ela, preferindo o conforto da nostalgia por um tempo de uma "beleza dócil e sem conflitos". É exatamente em direção contrária – apontando para uma coletivização do conhecimento e para a produção de um pensamento aberto e coletivo – que aponta o projeto NBP e outras ações instigantes da arte contemporânea.
No caso específico de meu projeto de trabalho denominado Você gostaria de participar de uma experiência artística?, há a opção pela encenação de protocolos relacionados aos papéis do "artista" e do "participante" da obra de arte contemporânea: trata-se "uma investigação acerca do envolvimento do outro como participante em um conjunto de protocolos indicativos dos efeitos, condições e possibilidades da arte contemporânea".
São estabelecidas algumas linhas-limite para cada um dos papéis (aquele que propõe; aquele que reage à proposição de modo participativo) de modo a ser construído um ritual dialógico. De fato, uma vez aceita a provocação inicial por parte do participante, o que ocorre é a produção de uma ação ou evento, frente ao qual sou provocado a reagir – o participante torna-se então ‘propositor’, contribuindo com algo que me conduz à "participação", para que possa reagir frente ao que foi produzido e elaborado.
Há aí uma "assimetria" de papéis que se invertem, que considero produtiva e que contribui para uma outra composição das "ordens ou hierarquias" do circuito de arte, além de preservar e estender a discussão acerca das noções de "obra" e "autoria".
Na questão "você gostaria de participar de uma experiência artística?", está implícita a idéia de espaço para a expressão ou, no mínimo, de diálogo com quem formulou inicialmente a pergunta. A troca é inerente à existência da obra. O NBP, neste sentido, se encaixa numa das questões básicas da documenta 12: "o que é a vida nua?"
Acredito que meu projeto contribui para as discussões gerais trazidas pela mostra, em todas as suas questões: parece-me que a documenta 12 propõe que estas discussões sejam elaboradas pelas obras elas mesmas, sem tantos desvios e mediações, e que seus "três temas" funcionem como eixos amplos de organização desta conversa também "infinita" – considero esses traços bastante positivos.
Entretanto, esta não é uma tarefa simples e é de se esperar uma tramitação complexa do problema – ou seja, a elaboração de questões no tempo direto mesmo de relacionamento com os trabalhos requer cuidados de aproximação para evitar leituras superficiais...
No caso, acredito que meu projeto de trabalho aponta em diversas direções e produz questões importantes a respeito das relações da obra contemporânea com o circuito de arte, sua dimensão conceitual e seu papel enquanto ação de resistência frente ao quadro de um capitalismo cultural que se insinua junto ao campo da arte a qualquer preço, instrumentalizando-o.
Guy Brett estabelece um paralelo entre seu trabalho e o legado de Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, no sentido de uma "compreensão participatória da arte". Como você vê seu próprio trabalho dentro desta tradição?
Sim, a presença de meu trabalho dentro desta linha de discussão da arte contemporânea brasileira é também reivindicada diretamente por mim: a própria noção de "transformação", característica fundadora do projeto NBP, foi concretamente referenciada no trabalho de Clark e Oiticica.
Logo, sinto-me confortável frente à sugestão de Guy Brett – sobretudo por não haver uma conexão diretamente formal, e sim conceitual. Interessam-me as noções de "linha orgânica", de Lygia Clark, "espaços imantados", de Lygia Pape, de "suprasensorial", de Hélio Oiticica – entre outras importantes invenções conceituais dos três artistas.
Mas ao mesmo tempo meu trabalho difere radicalmente de Clark e Oiticica no sentido de não postular qualquer horizonte utópico de "cura" ou redenção aos problemas do presente – procuro, nesse sentido, responsabilizar o participante por uma tomada de posição mais específica quanto à possível transformação pretendida, pensando na obra de arte como ferramenta produtora de questões e deflagradora de discurso.
Há um abismo entre o principal período de atuação desses artistas e o momento em que iniciei minha produção (os anos 1980), marcado pela presença do governo militar estatizante, que forçou a interrupção de alguns processos culturais – dentre os quais o experimentalismo brasileiro contemporâneo, retomado a duras penas somente a partir dos anos 1990 (embora algumas ações pontuais multimídia tenham emergido na década anterior, sendo obscurecidas pela euforia efêmera da "volta à pintura").