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Zika: 9 anos depois, crianças sofrem redução de tratamentos

26 de julho de 2024

Crianças com síndrome congênita do zika estão com acesso reduzido a tratamentos terapêuticos e privadas de cirurgias importantes.

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Criança vítima de microcefalia carregada pela mãe
Pernambuco foi estado que registrou os primeiros casos de síndrome congênita do zika, em agosto de 2015.Foto: Antonio Lacerda/dpa/picture alliance

Por volta das cinco da manhã, Vera Silva terminou de organizar a filha, Sophia Valentina, para ir ao Recife. São cerca de 60 quilômetros entre Escada, onde vivem, e a capital pernambucana. Esse caminho é repetido há oito anos, desde que Sophia foi diagnosticada com síndrome congênita do zika. Ao sair de casa, a família levou consigo a esperança.

O destino era a sede da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), onde Sophia faria uma revisão da cirurgia de quadril que realizou 2023. A expectativa é saber quando será o próximo procedimento, adiado desde maio por falta de material cirúrgico. "Chegaram para mim hoje e disseram: ‘Não há mais o que fazer com ela. Sem a cirurgia, ela não se enquadra aqui, pois não evolui.' Isso, para mim, doeu", lamenta Silva, que voltou oito horas depois para casa com frustração e cansaço.

Agosto de 2024 marcará nove anos que os primeiros casos de síndrome congênita do zika começaram a ser notificados no Brasil. Sem os mesmos investimentos e atenção do passado, as famílias das crianças atingidas pela microcefalia enfrentam dificuldade para garantir terapias e realização de cirurgias para os filhos. Os centros de atendimento reduziram a carga horária de atividades, e há 139 crianças esperando para realizar operações apenas em Pernambuco, que notificou os primeiros casos em 2015.

Homem carrega criança escada abaixo
Sophia Valentina precisa ser carregada pelo pai no braço para ir ao Recife, em busca de tratamento.Foto: Arquivo Pessoal

"Toda aquela midiatização, a emergência de saúde, não serviu. O acesso a terapias tem sido a coisa mais difícil do mundo, principalmente depois que os casos de transtorno do espectro autista (TEA)e outros transtornos começaram a crescer", comenta Germana Soares, presidente estadual da União de Mães de Anjo (UMA) e vice-presidente da UniZika Brasil, organização que representa 1.500 crianças com a síndrome em todo o país.

Quando a rede de saúde começou a ser estruturada para atender aos bebês com a síndrome, a AACD e a Fundação Altino Ventura (FAV) absorveram a demanda das crianças por terapias e tratamentos em Pernambuco. Isso não ocorre mais, segundo a UMA. Na AACD há apenas acesso a órteses e cadeiras de roda. Mesmo assim, pode haver atrasos na entrega. "Eu aguardava a cadeira de rodas do meu filho desde 2018. A gente só veio receber o material em outubro do ano passado", conta Soares.

No caso dela, isso significou precisar encontrar sozinha soluções para realizar o deslocamento do filho Guilherme, com oito anos e 51 quilos, "mas há crianças sem atendimentos básicos, como de um neuropediatra". Atualmente, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei n° 6064, que prevê indenização por dano moral e concessão de pensão especial às crianças.

Para Soares, não ter indenização até hoje é uma irresponsabilidade do Estado brasileiro: "Existe falta de respeito maior do que provocar uma demanda eterna, cruzar o teu caminho, cruzar o caminho da tua mãe, da sua família inteira, te limitar, afundar teus sonhos, teus planos, mudar teu destino e nem sequer te indenizar, te prover uma assistência digna, uma assistência básica digna, uma qualidade de vida?"

Cirurgias adiadas e terapias canceladas

A maior demanda das crianças com a síndrome do zika  é de cirurgias de quadril, para corrigir luxações e escolioses. De acordo Soares, três crianças já morreram esperando o procedimento, outras 139 estão aguardando. Em maio, uma audiência pública foi realizada na Assembleia Legislativa de Pernambuco, onde tramita o Projeto de Lei 1799/2024, propondo um prazo de 45 dias entre as consultas médicas e as intervenções cirúrgicas ortopédicas.

Na ocasião, o ortopedista Epitácio Rolim ressaltou que essas cirurgias foram requisitadas desde 2017, mas não foram realizadas deixando os quadris das crianças deformados. "Mas, mesmo que não possamos modificar isso, é urgente tirar a dor que sentem e dar qualidade de vida a elas", disse o médico no plenário. Para Soares, há uma falta de priorização do governo. "O nosso medo é de que a gente continue perdendo mais crianças pela falta de uma cirurgia que é ofertada no SUS.”

No caso de Sophia Valentina, o outro procedimento, dessa vez do lado esquerdo, deveria ter sido feito em junho, mas não havia material disponível. "Hoje minha filha chora dia e noite, com bastante dor, tem crise, já não dorme direito. É muito dolorosa essa situação", lamenta Vera Lúcia da Silva.

Há dificuldades também no acesso a outros serviços, como fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. "No auge, todo mundo queria tratar as nossas crianças, mas hoje é diferente. A gente precisa sair de um município a outro, para ver onde terá vaga disponível." Segundo ela, Sophia foi retirada de quase todas as terapias que realizava na FAV, no Recife.

O mesmo aconteceu com Graziella Tavares, de oito anos, que tinha atendimentos de fonoaudiologia, fisioterapia e fisioterapia aquática uma vez por semana na FAV, mas passou a ter assistência a cada 15 dias. "Minha filha tem muitos internamentos, muitas crises convulsivas, então eu acabo tendo que fazer as terapias em casa, sozinha, senão ela ficará ainda mais comprometida", relata a mãe, Inabela Souza, de 39 anos.

Graziella espera há dois anos por atendimento de um dentista especializado no Recife. "Minha filha não estava conseguindo mastigar, o dente estava nascendo, a gengiva ficando inchada, então ficou com desnutrição grave por não conseguir comer”, conta Souza, acrescentando que os equipamentos disponíveis hoje na rede não estão adaptados ao tamanho das crianças. "Passei a dormir com ela todo dia, com medo de que algo pior aconteça."

Mulher cuida de menino portador de deficiência
Daniel Vieira, oito anos, precisaria de terapia ocupacional e fisioterapia respiratória, mas não tem acesso.Foto: Arquivo Pessoal

O filho da artesã Jaqueline Vieira, de 33 anos, tampouco tem conseguido acesso às terapias que necessita. Daniel, de oito anos, precisaria de terapia ocupacional e fisioterapia respiratória, mas só tem acesso a fisioterapia motora e fonoaudiológica. "A assistência é muito precária. Antes era muito interesse, muita pesquisa, hoje em dia eles saem cortando tudo, desligando as nossas crianças, dizem que é a idade de parar. A gente está esquecido."

De acordo com a AACD, em 2015 a entidade chegou a receber 211 pacientes com a síndrome para reabilitação. "Por apresentarem lesão no sistema nervoso central, ocasionando uma disfunção motora, foram enquadrados na clínica de Paralisia Cerebral, uma de nossas linhas de cuidado", afirma a gerente da AACD Recife, Luciana Martins. Segundo a organização, todas essas crianças seguem em acompanhamento com consultas médicas, para reavaliação de quadros motores e recebimento de órteses.

Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) afirmou que tem realizado a avaliação dos serviços prestados nos Centros de Reabilitação para otimizar o acesso dos pacientes, além de estar realizando mutirões de exames e consultas para avaliar as crianças com indicação de cirurgias de quadril. Foi ampliada a oferta de consultas num ambulatório de escoliose, além do acesso à aplicação de toxina botulínica. A partir do segundo semestre, mais três unidades de saúde passarão a realizar as cirurgias de quadril. O estado acompanha 397 crianças diagnosticadas com a síndrome.

Mulher fotografada com filha
Graziella Tavares espera por atendimento de dentista há dois anos.Foto: Arquivo Pessoal

A Prefeitura do Recife afirmou que realiza acompanhamento nutricional a cada três meses e de gastroenterologia a cada seis meses com as crianças. Em 2023, foi instituído o Protocolo Municipal de Assistência às Crianças  com Síndrome Congênita do Zika Vírus, destinado aos 73 menores acompanhados na cidade. "Quanto à saúde bucal, esse atendimento faz parte da integralidade do cuidado e deve ser inicialmente realizado na Unidade de Saúde da Família. Se necessário, as crianças são encaminhadas para os Centros de Especialidades Odontológicas”, diz a prefeitura em nota. A FAV não respondeu até a publicação dessa reportagem.

Sombra do zika volta diante de casos de oropouche

A identificação do vírus da febre oropouche em dois fetos mortos em Pernambuco, um indício de que é possível a doença ser passada da gestante para os bebês, trouxe de volta a sombra das consequências do zika vírus para os serviços de saúde estaduais. Pernambuco reforçou a vigilância para tentar identificar casos precocemente e evitar repetir o ocorrido nove anos atrás.

Mão segura mini tubo de ensaio
Experiência com o zika vírus faz saúde de Pernambuco considerar chance de aumento de casos de microcefaliaFoto: Ricardo Moraes/REUTERS

"A gente entrou em estado de alerta, pois temos esse antecedente”,  afirma o secretário executivo de Vigilância em Saúde e Atenção Primária da Secretaria de Saúde de Pernambuco (SES-PE), Bruno Ishigami. Segundo o Ministério da Saúde, estão em investigação seis casos de transmissão vertical (de mãe para filho): três em Pernambuco,  um na Bahia e dois no Acre. "Dois casos evoluíram para óbito fetal, houve um aborto espontâneo e três casos apresentaram anomalias congênitas, como a microcefalia."

Para Ishigami, a experiência com o zika vírus faz Pernambuco considerar que "existe uma possibilidade real de se repetir o que aconteceu no passado". Por isso, o estado recomendou a notificação imediata dos óbitos fetais cujas mães apresentaram sintomas de arboviroses e iniciou um levantamento retrospectivo de todos os casos ocorridos desde 2017.

"A identificação dos casos em gestante indica um potencial de dano à sociedade como foi com o zika, então isso nos sensibiliza. Entendemos que é hora de protegermos as nossas gestantes, para reduzir o impacto do que venha a acontecer nas próximas semanas", afirmou o secretário.

O estado está criando um comitê que começará a operar na última semana de julho, envolvendo pesquisadores dos mosquitos vetores de doenças, e acadêmicos e profissionais de saúde que realizaram pesquisas associadas ao zika vírus. "A gente sofreu com o zika e acompanhamos as consequências até hoje. Entendemos como a vida das famílias, principalmente das mães, e das crianças foi impactada. Há mulheres que precisaram parar de trabalhar, outras que precisam se deslocar do interior para o Recife em busca de atendimento", ressalta Ishigami.