"É preciso fazer uma limpeza na Fundação Palmares"
13 de março de 2023"Estive no prédio da Fundação Palmares e a impressão é a pior possível". Essa foi a avaliação de João Jorge Rodrigues ao ser questionado pela DW Brasil sobre a situação da instituição que ele comandará a partir de 2023, e cujo objetivo é popularizar e valorizar a cultura negra no Brasil.
Escolhido para o cargo por Margareth Menezes, atual ministra da Cultura, João Jorge é mestre em direito pela universidade de Brasília, filiado ao PSB e um dos idealizadores do bloco afro Olodum, da Bahia.
Ele considera sua missão organizar não só o espaço físico do órgão, mas também sua função social, após a gestão de Jair Bolsonaro. "É como uma cirurgia num corpo que está doente. Para que ele possa sobreviver, é preciso fazer uma limpeza."
Ao longo da entrevista, João Jorge criticou o ex-presidente da Fundação Palmares, o jornalista Sérgio Camargo, cuja atuação ficou marcada pelas críticas às personalidades negras, como Zumbi dos Palmares e Martinho da Vila, ao movimento negro, que ele chamou de "escória", e ao Dia da Consciência Negra, que definiu como "dia da vitimização do negro".
Ao olhar para o futuro, o gestor ressaltou que pretende descentralizar as ações culturais pelo país, dando mais protagonismo ao Norte e Nordeste, além de aumentar a articulação com outros ministérios além da Cultura, como da Educação e Saúde, para turbinar o orçamento do órgão, estimado em R$ 1,4 milhão para 2023.
"Esse baixo recurso foi proposital para que a fundação não pudesse fazer nada neste ano", afirma Rodrigues.
DW Brasil: O senhor já esteve na Fundação Palmares? Quais são as primeiras impressões do que encontrou?
João Jorge Rodrigues: Estive na no prédio onde está sediada a Palmares, em Brasília, e a impressão é a pior possível. O espaço é pequeno, não tem ar-condicionado, os banheiros estão sendo recuperados, não há estacionamento... Em resumo: um descaso completo. Ficou ainda mais evidente a forma como o governo anterior tratou a instituição, que é fundamental para o mundo afro-brasileiro e cultural nacional.
A Fundação Palmares foi criada em 1988. Nesse período, só dois presidentes tiveram esse descaso com a instituição: Fernando Collor de Mello e esse último que saiu [Jair Bolsonaro]. O antigo presidente da Fundação [Sérgio Camargo] ficou atacando pessoas do movimento negro durante três anos, tentando desconstruir a luta que a população negra tem feito por igualdade. Ele pode não gostar da luta por igualdade, de liberdade e justiça. O que não pode é ficar três anos dizendo que essa luta é "mimimi", ofendendo as pessoas, sem propor nada. Não houve uma única ação para a população negra no período.
Diante desse cenário, quais serão os pilares fundamentais de reconstrução do órgão?
Nós vamos trabalhar para que a Fundação Palmares volte a ter o papel desenhado para ela em sua origem, que é tratar dos espaços, da cultura e da memória da comunidade negra no Brasil, e ao mesmo tempo se associar à luta da população indígena. A primeira coisa é encontrar um espaço adequado para a Fundação, algo que já estamos em diálogo com o Serviço de Patrimônio da União. Um espaço digno para receber a biblioteca, os documentos e todo o acervo.
Depois, estamos desenvolvendo um projeto para que seja construído um museu no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, sobre a diáspora e a herança africana. Por fim, precisamos buscar recursos para atuar nos 27 estados do país. O que nós temos à disposição hoje não permite colocar em prática aquilo que desejamos, que é levar a Fundação Palmares do Acre ao Rio Grande do Sul, torná-la uma instituição do povo brasileiro, ainda que esteja situada em Brasília.
São ações que precisarão ser discutidas com a Margareth [Menezes, ministra da Cultura], num processo geral de restruturação da cultura e do processo civilizatório. Não houve maior ataque nesse país ao longo dos últimos quatro anos do que ao setor cultural, e nós estamos inseridos nesse contexto.
O orçamento previsto para a fundação em 2023 é de R$ 1,4 milhão. O que dá para fazer com essa verba?
Não tem fórmula mágica. Vamos precisar mobilizar os governos municipais e estaduais, emendas parlamentares, a iniciativa privada, para conseguir recursos e desenvolver ações que possam retomar as atividades da instituição. Esse baixo recurso foi proposital para que a fundação não pudesse fazer nada neste ano. Ter um diálogo com as secretarias de cultura, com os ministérios que podem nos ajudar, como Educação e Saúde.
Não vamos deixar que a falta de recursos paralise ainda mais a vida da fundação. Em 2024, já sob o orçamento do presidente Lula e gestão da Margareth Menezes, tenho certeza de que teremos uma situação diferente.
Entre algumas medidas de Sérgio Camargo, duas chamaram a atenção: a exclusão de personalidades entre os homenageados, como Elza Soares e Martinho da Vila, e a retirada do machado de Xangô no logo da Fundação. Esses dois aspectos serão revistos agora?
Não só será revisto, como será melhorado. Vamos incluir novas personalidades, mulheres negras de extrema importância para nossa sociedade, como Cida Bento [psicóloga e fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)] e Sueli Carneiro [filósofa e fundadora do Geledés - Instituto da Mulher Negra. Martinho da Vila, Leci Brandão, e outros que foram atacados, todos eles estarão na Fundação Palmares.
O símbolo de Xangô é contra a intolerância religiosa, algo que deveria ser prioritário para qualquer brasileiro. Houve uma tentativa no governo anterior de quebrar o espírito de luta e plural que está cerne da fundação.
Desde quando o senhor conhece a Margareth Menezes, e como foi o convite para assumir a Fundação Palmares?
Conheço Margareth há 36 anos, desde que ela começou a cantar na Bahia. Uma das suas principais músicas, Faraó, fez sucesso com o Olodum e foi fundamental em sua carreira. Ela é uma mulher negra, baiana, porreta, construtora de cultura neste país e que tem tudo para fazer uma ótima gestão. Conheço Lula desde a campanha presidencial de 1989 e sempre tivemos ótima relação. Eles me fizeram o convite e eu aceitei, satisfeito e empolgado com o enorme desafio que temos pela frente.
Como tem sido fazer a transição de equipe da gestão anterior para a atual?
Evidentemente que nós estamos trazendo pessoas novas para dentro da Fundação. Mas há funcionários que resistiram também ao longo desses anos, sofrendo assédio e represália, para que a Palmares continuasse a fazer minimamente aquilo que dela se espera. Então, não é todo mundo inimigo ou adversário. Essa é uma ponderação necessária e que precisa ser feita em nossa administração.
Quem se identificava com o outro governo e com aquelas ideias está saindo e vai continuar a sair. É como uma cirurgia num corpo que está doente. Para que ele possa sobreviver, é preciso fazer uma limpeza e energizá-lo não só com o espírito de Zumbi, mas com a força de Gilberto Gil, Lélia González, Martinho da Vila, Sueli Carneiro e tantas pessoas da nossa história.