A relação da Rússia com África compensa
10 de março de 2022No dia 2 de março, a Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque, debateu uma resolução que pedia às tropas russas que se retirassem da Ucrânia "imediatamente, completamente e incondicionalmente".
141 dos 193 membros da ONU votaram a favor, um sinal forte da condenação da comunidade internacional à invasão russa da Ucrânia. A votação, porém, deixou clara as divisões em África sobre esta questão.
Enquanto 28 dos 54 países africanos apoiaram a Ucrânia, os restantes - exceto a Eritreia, que votou contra a resolução - ou se abstiveram ou optaram por não comparecer para votar.
Camarões, Etiópia, Guiné-Conacri, Guiné-Bissau, Burkina Faso, Togo, Eswatini e Marrocos estiveram ausentes.
A Argélia, Uganda, Burundi, República Centro-Africana, Mali, Senegal, Guiné Equatorial, Congo-Brazzaville, Sudão, Sudão do Sul, Madagáscar, Moçambique, Angola, Namíbia, Zimbabué e África do Sul abstiveram-se.
No "lado errado" da história?
Isto gerou duras críticas, especialmente por parte de intelectuais, diplomatas e políticos da oposição na África do Sul.
"A recusa em condenar esta guerra coloca a África do Sul no lado errado da história", afirma Herman Mashaba do recém-formado partido da oposição, ActionSA.
Mashaba diz ser óbvio que a invasão russa da Ucrânia é uma "violação dos princípios internacionais de direito" e acusa o Congresso Nacional Africano (ANC), no poder da África do Sul, de se recusar a cortar os laços com a Rússia, um aliado histórico.
O Presidente Cyril Ramaphosa tem defendido a decisão do seu Governo de se abster na votação da resolução da ONU.
Numa declaração divulgada na segunda-feira, Ramaphosa afirmou que a resolução não enfatizava o papel do diálogo pacífico para parar a guerra, razão pela qual o seu país não a podia apoiar.
O politólogo angolano Olívio N'kilumbu diz que muitos políticos do ANC ainda são leais à Rússia.
"Alguns são da opinião que o antigo movimento de libertação ainda deve muito aos russos desde os tempos da Guerra Fria, e agora nós africanos temos de nos calar sobre a invasão russa", referiu N'kilumbu em entrevista à DW .
A propaganda russa visa "reavivar as velhas ligações entre a União Soviética e os movimentos de libertação" em muitos países africanos, incluindo a África do Sul, acrescentou.
Batalha no Twitter
Um exemplo disso é um tweet da Embaixada da Rússia na África do Sul, que agradeceu aos sul-africanos por expressarem a sua solidariedade com a luta da Rússia contra o que o tweet designava como "nazismo na Ucrânia".
A embaixada da Alemanha na África do Sul respondeu rapidamente com um tweet próprio.
"Desculpem, mas não podemos ficar calados com este tweet, é demasiado cínico. O que a Rússia está a fazer na Ucrânia é massacrar crianças, mulheres e homens inocentes, para seu próprio proveito. Definitivamente que não é 'combater nazismo'. Vergonha para quem quer que caia nessa mentira", diz a reação alemã, que termina com uma declaração entre parênteses, "Lamentavelmente, somos meio que especialistas no que toca a nazismo".
Mas a resposta da Alemanha provocou algumas críticas pesadas por parte dos utilizadores sul-africanos do Twitter.
Alguns apontaram o apoio da União Soviética à luta pela libertação da África do Sul do "apartheid", enquanto outros apoiaram a justificação da Rússia para a invasão da Ucrânia ou criticaram a história colonial da Alemanha na África Austral.
Um utilizador escreve: "A Rússia apenas se opõe ao avanço da NATO em território ucraniano. As consequências desta expansão foram claras e a NATO decidiu ignorá-las. Esta guerra era previsível e evitável".
Outro utilizador pergunta: "O que é que a Alemanha fez na Namíbia?"
A ligação histórica à União Soviética
O cientista político N'kilumbu diz que a propaganda russa é também dirigida a outros países africanos, especialmente no sul do continente, cujos movimentos de libertação tiveram o apoio político e militar da antiga União Soviética.
Ao abster-se de votar a resolução da ONU sobre a Ucrânia, países como Angola, Moçambique, Zimbabué e Namíbia tinham esta "amizade histórica em mente", afirma N'kilumbu.
"Especialmente em Angola e Moçambique, não houve praticamente nenhuma mudança política desde a era da Guerra Fria. É por isso que o cordão umbilical que liga estes países a Moscovo nunca foi cortado", comenta N'Kilumbu.
O Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), por exemplo, continua a manter laços estreitos com as elites militares, empresariais e políticas da Rússia, salienta o politólogo.
"A nível militar, ainda temos instrutores russos. A nossa academia militar é praticamente toda russa", diz.
Armas e recursos russos
Nos últimos anos, a Rússia tem utilizado cada vez mais estas ligações históricas soviéticas para expandir as suas relações políticas, económicas e, sobretudo, militares com as nações africanas.
Em 2019, Vladimir Putin foi o anfitrião de uma Cimeira Rússia-África que contou com a presença de 43 líderes africanos.
Um ano mais tarde, a Rússia tornou-se o maior fornecedor de armas de África.
De acordo com uma análise de 2020 do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz (SIPRI), entre 2016 e 2020, cerca de 30% de todas as armas exportadas para países da África subsaariana vieram da Rússia.
Isto ofusca o fornecimento de armas de outras nações como a China (20%), França (9,5%) e os EUA (5,4%).
O volume de remessas de armas russas aumentou em 23% em comparação com os cinco anos anteriores.
Armas para a República Centro-Africana
Em nenhum lugar do continente a influência russa cresceu tão rapidamente como na República Centro-Africana (RCA).
A cooperação intensificada entre as duas nações começou em 2017, quando a Rússia entregou pela primeira vez armas, incluindo Kalashnikovs e mísseis terra-ar, ao país devastado pela guerra.
Desde então, a Rússia tem vindo a aumentar gradualmente a sua presença na RCA.
Em 2018, conselheiros militares russos foram enviados para o país com o objetivo oficial de treinar as forças armadas locais.
Entretanto, numerosas empresas russas receberam licenças para extrair ouro e diamantes no país, enquanto o seu Presidente, Faustin Archange Touadéra, é agora escoltado por russos. O seu principal conselheiro de segurança é Valery Sakharov, um antigo funcionário dos serviços secretos russos, o FSB.
Dados os laços de Moscovo à nação, não surpreende que um comício pró-Rússia tenha tido lugar na capital Bangui no sábado, diz o cientista político Olívio N'kilumbu.
Manifestantes ergueram cartazes com slogans como "Rússia, a RCA está convosco" e "Rússia salva o Donbass", uma referência à região no leste da Ucrânia onde separatistas apoiados pela Rússia têm vindo a combater as forças ucranianas desde 2014.
"A Wagner está no Mali"
A Rússia também expandiu a sua presença no Mali. Há meses que correm rumores de que os líderes militares malianos contam com o apoio de mercenários russos, alegações que a junta tem negado.
Mas os Estados Unidos têm acusado repetidamente o Governo do Mali de trabalhar com Moscovo.
O Africom, o comando militar norte-americano para África, denunciou que "várias centenas" de mercenários russos se encontravam no país.
"O grupo Wagner está no Mali", disse o general Stephen Townsend durante uma entrevista à Voz da América, em janeiro, referindo-se à obscura empresa militar privada russa ligada a um aliado próximo de Vladmir Putin.
Há também relatos de que os mercenários da Wagner lutaram em Moçambique, no Sudão e na República Centro-Africana.
Dependências políticas, históricas e militares
O escritor e intelectual guineense Tierno Monenembo acredita que muitos Estados africanos nunca se libertarão do domínio da Rússia, especialmente dada a sua crescente dependência das proezas militares de Moscovo.
Neste contexto, afirma, a decisão de 25 países africanos de não condenar a invasão russa da Ucrânia é compreensível.
"Em tal situação, é difícil para as nações africanas tomarem uma posição", diz. "Quando se é pequeno, quando se é fraco, quando se está mal armado e subdesenvolvido, não nos envolvemos simplesmente num conflito entre superpotências militares. Esse é um negócio dos grandes jogadores".
Monenembo lembra um provérbio Fulani que diz: "'A galinha não precisa de discutir o preço da faca'. Quem quer que esteja na posse da faca, é quem cortará a garganta da galinha".
O artigo original foi escrito em alemão.