"Angola dirige-se para um desastre político e social"
5 de fevereiro de 2015Rafael Marques interroga-se sobre como o Governo de Luanda vai lidar com as restrições impostas pela queda do preço do ouro negro, na medida em que Angola não fez no passado investimentos em áreas básicas como a indústria alimentar e o sector agrícola, entre outros.
Ainda assim, o ativista acredita que a textura social angolana pode até aguentar uma situação preocupante como a que está a ser vivida atualmente em Angola, revelou em entrevista à DW África.
DW África: Considera que Angola está a dirigir-se para um "desastre político e social". Será que a textura social angolana pode ainda aguentar uma situação tão preocupante, como disse recentemente?
Rafael Marques (RM): A sociedade angolana até pode aguentar, mas a relação entre o atual Governo e a sociedade pode não aguentar esta pressão. O Governo, o Presidente da República sobretudo, foi fazendo várias promessas ao longo dos anos e a propaganda institucional mostrou uma ideia de um país que estava a correr às mil maravilhas, com um problema aqui e acolá, mas com uma melhor distribuição da renda nacional.
E o que está a acontecer agora com esta crise dos preços do petróleo é que nem sequer os angolanos da classe média que têm os filhos a estudar fora estão a conseguir fazer transferências de dinheiro para pagar os estudos dos seus filhos.
Internamente, aqueles que são muito pobres continuam a viver na mesma situação porque quase já não têm relação nenhuma com o Estado, excepto quando o Estado interfere na sua vida para lhes expropriar terrenos ou para lhes acrescentar mais danos no seu quotidiano. Essas pessoas, que de certo modo são a maioria, já nem sentem sequer a crise. Esta crise afecta mais o que podemos chamar de classe média. Mas esta crise é sobretudo agudizada pela forma errática como o Presidente está a conduzir o país.
DW África: Face a esse quadro, haverá em Angola mais protestos e mais repressão?
RM: Não, porque grande parte dos indivíduos que faziam protestos eram pessoas até desempregadas, alguns jovens universitários, mas não eram indivíduos ligados à função pública. O que vai haver este ano são muitas greves na função pública, no próprio exército e na polícia nacional, pelo descontentamento crescente. Não se trata de protestos de rua, trata-se da desarticulação da máquina partidária, do culto da personalidade nas próprias instituições do Estado. Porque hoje o que é comum na leitura destes setores da sociedade angolana que sempre apoiaram o regime é que o Presidente já não está em condições de garantir a sua estabilidade.
DW África: Mas o Governo suportado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, no poder) tem falado, nos últimos tempos, na construção de uma Angola “próspera e solidária”, enaltecendo inclusive efeitos como mais energia elétrica para a população. A propaganda do Governo ainda está a ser aceite por uma certa camada da população angolana?
RM: O Governo como entidade soberana do Estado foi abolido com a nova Constituição de 2010. O Presidente passou a ser o titular do Executivo. Então, o Governo é o Presidente da República. Há os órgãos essenciais do Presidente da República, que são os seus assessores na presidência, e os órgãos auxiliares. O que nós chamamos de Governo em Angola é apenas um órgão auxiliar do Presidente, nem sequer é um órgão essencial. E foi aí que se criou uma grande confusão.
Sempre que alguma coisa corre mal, o Presidente fala no Governo, para este assumir a responsabilidade. E quando as coisas correm bem dizem que foi o Presidente que fez, o titular do Executivo. Esse jogo do Presidente de não querer assumir responsabilidade por tudo aquilo que corre mal na sociedade angolana e assumir apenas as virtudes causou este grande impacto. Desarticulou a capacidade de ele próprio dividir a responsabilidade com os membros do seu Executivo. Esse poder absoluto está agora a virar-se contra o Presidente. É o feitiço que se vira contra o feiticeiro.