Lei das ONG é "carta branca" contra vozes incómodas
26 de maio de 2023As organizações não-governamentais angolanas estão muito preocupadas com a proposta de lei do estatuto das ONG, aprovada esta quinta-feira (25.05) no Parlamento, na generalidade.
A União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), o maior partido da oposição, votou contra a proposta, que considera estar cheia de "inconstitucionalidades", e que prevê a criação de um órgão de supervisão estatal.
Outro ponto negativo é a interferência na vida interna das organizações, diz o presidente da Associação Mãos Livres, Guilherme Neves, que vê a lei como uma "carta branca" para o Executivo extinguir as ONG.
Em entrevista à DW África, o também coordenador do Grupo de Trabalho de Monitoria dos Direitos Humanos receia que venham aí mais restrições de direitos fundamentais: "A nossa grande preocupação é essa tendência de o Governo cada vez mais procurar limitar o espaço do exercício da cidadania".
Várias ONG angolanas lançaram esta semana uma campanha nacional contra a proposta de lei, alertando que o objetivo do Governo é sobretudo "controlar as organizações".
DW África: Na quinta-feira, o Parlamento angolano aprovou na generalidade a proposta de lei do Estatuto das Organizações Não-Governamentais com os votos contra da UNITA. Acha que, com esta nova lei, o Governo passa a ter carta branca para interferir diretamente no trabalho das ONG e até extingui-las?
Guilherme Neves (GN): Na verdade, essa foi sempre uma luta do Governo, ter uma carta branca para, a seu bel-prazer, suspender ou extinguir organizações. No fundo, o que o Governo pretende é ter um dispositivo legal que permita, de facto, extinguir aquelas organizações que ele entender que são contra o poder. O receio é que, com esta lei, certamente vão restringir o espaço cívico.
DW África: Esta proposta também prevê a criação de um órgão de supervisão e uma série de normas que já foram descritas pelo maior partido da oposição e também por algumas organizações como inconstitucionais. Estão preocupados com a interferência na vida interna das organizações e mais abusos por parte do Governo?
GN: Sim. Trata-se de uma violação grave dos direitos fundamentais, porque, num Estado democrático de Direito, o poder não pode restringir cada vez mais os direitos fundamentais. Pelo contrário, deve alargá-los.
Esta questão de interferir diretamente na vida das organizações é uma grande preocupação, porque, em princípio, de acordo com a Lei das Associações, as ONG são parte do direito privado. Logo, não pode haver uma interferência direta do Executivo. Os fundamentos que apresenta são os mesmos que o Executivo apresentou em 2015, quando a mesma norma - porque não mudou nada, é a mesma - foi declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Infelizmente, a nossa grande preocupação é essa tendência de o Governo cada vez mais procurar limitar o espaço do exercício da cidadania.
DW África: Face a estes desenvolvimentos, que passos estão a pensar tomar agora, tanto no Grupo de Trabalho de Monitoria dos Direitos Humanos, como na Associação Mãos Livres ou noutras organizações?
GN: Nós continuamos com a nossa luta. Vamos procurar usar todos os meios legais para que o Governo não possa realmente limitar os direitos fundamentais das associações. Temos uma agenda de trabalho. Na terça-feira vamos apresentar publicamente o nosso posicionamento e depois temos uma série de atividades, com contactos com os parlamentares e outras forças. Vamos também acionar aqui os mecanismos internacionais, porque Angola é parte de vários instrumentos internacionais que Governo deve respeitar.
DW África: Na quinta-feira também foi aprovado na generalidade o projeto de lei sobre a Liberdade de Reunião e de Manifestação, uma iniciativa da UNITA. Como é que reagem a esta aprovação? Que impacto acha que terá a nova lei? E o que muda na prática?
GN: Penso que foi um bom passo. Acho que é uma das primeiras propostas da oposição em que o partido no poder votou a favor. Acredito que, se a norma passar, poderá trazer um novo elemento no âmbito do exercício da cidadania, do ponto de vista das liberdades de manifestação e de opinião.
De há um tempo para cá, aconteceram muitos incidentes, por um lado, por má interpretação da norma, porque muitos que são parte do poder político a interpretam de forma errada. Mas depois teremos de ver como a lei sairá da discussão na especialidade e quais serão os normativos. E teremos de ver como vai evoluir na prática. Porque o grande problema não é a falta de leis, mas como essas leis são aplicadas.
DW África: Além desta lei, também seria urgente uma reforma de fundo na polícia angolana, por exemplo?
GN: A reforma existe. A polícia já deu grandes passos nesse sentido. Pelo menos nós, da sociedade civil, algumas vezes somos convidados para dar formação e debater com a polícia as questões dos direitos humanos. Há essa vontade, mas a reforma dentro da polícia não pode ser feita de forma isolada. O que precisamos é reformar as instituições como um todo.