Demissão de Hélder Martins abre espaço a discursos racistas
24 de fevereiro de 2021Em Moçambique, a demissão de Hélder Martins da Comissão Técnico-Científica para a Prevenção e Resposta à Pandemia da Covid-19 abriu espaço para uma onda de indignação, acusações e até discursos racistas nas redes sociais contra o médico.
Se para alguns, a decisão do especialista em saúde pública foi vista como "ousada" e "corajosa", para outros tantos, o facto de o médico ter trazido à discussão fragilidades da Comissão Científica da qual foi membro nos últimos 11 meses, foi motivo de discórdia. Nas redes sociais não tardaram a multiplicar-se posts insultuosos dirigidos ao antigo ministro da saúde.
Ferosa Zacarias, presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, sublinha que são comportamentos "inadmissíveis" perpetuados por "pessoas que se camuflam por detrás do Estado".
"Fica muito difícil de responsabilizar porque essas pessoas fazem em defesa do Estado ou entidades governamentais e nada acontece contra elas. Se deixarmos coisas destas acontecerem, significa que estamos a abrir espaço para que em Moçambique de facto o racismo venha a ditar as regras. Está a acontecer e vai continuar a acontecer porque as pessoas estão protegidas pelo Estado", explica em entrevista à DW África.
Cargos públicos devem ser repensados
O tema "racismo" ganhou palco depois de Julião Cumbane, presidente do conselho de administração de uma empresa pública, ter se referido a Hélder Martins como "branco" num post no Facebook.
Para a jornalista e ativista Fátima Mimbire, é "repugnante" que a discussão resvale para esse tipo de abordagem. "Não sei onde é que esses indivíduos encontram tanta energia e incentivos para ocuparem um tempo em que deveriam estar a buscar soluções para o desenvolvimento deste país - inclusive para a Covid-19 - para ficarem nas redes sociais a incitar a violência, ódio e o racismo", critica.
"É importante que a nossa justiça ponha cobro à situação e leve à barra da justiça os indivíduos de modo a que eles possam ser responsabilizados. Alguma coisa tem que se fazer para travar esses indivíduos porque são nefastos para a nossa sociedade", defende Fátime Mimbire.
Ferosa Zacarias vai mais longe e sugere que, tratando-se de indivíduos com cargos públicos, estes deviam ser repensados. "Não pode ficar impune no nosso país. Até se possível, tendo em conta o que eles representam na estrutura do Governo, devia ser um caso para mexer mesmo com o próprio cargo da pessoa. Não podemos ter dirigentes ou representantes a comportarem-se dessa forma e a ficarem impunes".
Inoperância da SERNIC
A presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de Moçambique alerta ainda que, para que haja uma penalização, primeiro é preciso que entidades governamentais venham a público distanciar-se desses comportamentos.
A advogada critica a inoperância do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) nestes casos.
"Desde que seja discriminar alguém ou cometer um crime, supostamente em defesa de uma entidade do Estado ou do Governo, a SERNIC nem tem nenhum trabalho aí, já sabe… a pessoa é um réu confesso. A própria SERNIC não toma medidas, não inicia ação processual. Quando inicia uma ação nunca tem o seu desfecho. Mas aparecem um ou dois cidadãos a falar mal ou insultar o presidente da República, vemos a SERNIC a agir", lamenta.
A DW tentou um parecer junto do Serviço Nacional de Investigação Criminal, mas não obteve resposta até à publicação desta reportagem.
Em Moçambique, "cipaios digitais" ou "milicianos digitais" é como são chamados os indivíduos que se posicionam na internet como defensores acérrimos do Governo da FRELIMO e o seu Presidente, Filipe Nyusi. Não é a primeira vez que a sociedade civil se insurge contra estes movimentos.