Maputo: Cansado de "engolir sapos", Hélder Martins demite-se
21 de fevereiro de 2021Na carta - datada de 16 de fevereiro, endereçada ao Presidente da República e divulgada, o antigo ministro da Saúde de Moçambique, professor e especialista em saúde pública apresenta os motivos que o levaram a demitir-se da Comissão Técnico-Científica para Prevenção e Resposta à Pandemia de Covid-19.
Após quase 11 meses como membro da comissão, Hélder Martins inicia a sua carta de demissão a agradecer pela confiança a ele confiada e mostra-se também orgulhoso por ter liderado uma "equipa multidisciplinar de investigação, inteiramente constituída por moçambicanos".
Hélder Martins escreve, entretanto, que a sua demissão é "o resultado de eu ter vindo a engolir sapos ao longo de todo este tempo e há um momento em que se diz: BASTA!"
O professor explica que o "Decreto 2/2021 de 4 de fevereiro e a comunicação presidencial que o antecedeu contêm as várias gotas que fizeram transbordar o copo".
A partir daí, passa a enumerar uma sequência de acontecimentos anteriores que teriam contribuído para o ápice da sua insatisfação.
Politização da pandemia
"A Comissão Técnico-Científica nasceu torta: Uma comissão técnico-científica não pode ser dirigida por um político, e um ministro. Mesmo que muito brilhante médico e académico, no dia em que toma posse como ministro torna-se um político. Portanto, desde o início, houve uma nítida intenção de introduzir factores políticos na gestão da epidemia. Uma epidemia não pode ser gerida por políticos," pontua Hélder Martins.
O especialista em saúde pública critica também "o fechamento da comissão aos média e à sociedade" e revela: "Houve uma decisão superior para que a comissão se mantivesse numa torre de cristal, longe de todos".
No seu texto, Hélder Martins deixa clara a sua posição de que "a comissão deve ser para aconselhar o país e não só o Governo" e diz considerar que "a abertura da comissão à sociedade e aos órgãos de comunicação social teria evitado uma série de falsas notícias que circulam nas redes sociais e que só causam pânico na população".
O professor sublinha também "o benéfico papel das ONGs na promoção da Saúde" para criticar que não tenham recebido "nenhum papel importante no combate a esta pandemia e a participação de ONGs no combate a esta pandemia, em Moçambique, é mínima".
Ainda segundo o membro demissionário, por estar sob a tutela dum ministro, a comissão teve dificuldades em desenhar um "plano de trabalhos baseado na evidência científica".
"Em várias ocasiões, diversos membros da comissão levantaram a questão da necessidade dum acompanhamento rigoroso da situação epidemiológica do país e da definição dum programa de trabalho baseado nessa evidência, mas sem grande resultado," escreve.
O professor alerta que "temas foram propostos sem sucesso porque a programação do trabalho da comissão obedeceu a uma agenda política vinda de fora".
Hélder Martins cita ainda como uma batalha perdida "a da necessidade de fazermos um estudo sobre porque a epidemia entre nós atinge mais as classes mais abastadas e os estrangeiros ao contrário de toda a lógica anterior de que seriam os mais desfavorecidos a sofrer o maior peso da doença".
Desrespeito pela comissão
Na carta, Hélder Martins lamenta a falta de divulgação dos trabalhos da comissão. Cita como exemplos Portugal e a África do Sul para indicar a necessidade da transmissão mediática em direto dos encontros entre as lideranças políticas e os especialistas em saúde.
"Todos os Governos têm o direito de tomarem as decisões que bem entenderem, mas se entenderem tomar decisões contrárias às recomendações dos especialistas, assumem as suas responsabilidades diante do povo eleitor, pois este também fica esclarecido sobre o que recomendam os especialistas," argumenta.
Para o professor, a não divulgação dos encontros serve "para que o Governo possa livremente tomar decisões sem qualquer fundamentação científica e sem que ninguém saiba quais foram as recomendações da comissão".
O demissionário denuncia ainda que "muitas foram as vezes em que as recomendações da Comissão foram ignoradas" e critica o facto de o Governo ter tomado "decisões em matérias em que a comissão não foi ouvida ou absolutamente ao arrepio do que a comissão recomendou".
Hélder Martins aponta o Decreto 110/2020, de 18 de dezembro – que autorizou a reabertura de cassinos, bares e barracas de venda de bebidas alcoólicas - como "o ponto alto do desrespeito pela comissão".
"As consequências dramáticas dessa medida associada à abertura desenfreada ao turismo na quadra festiva desencadearam uma segunda onda da epidemia de que estamos todos a sofrer as consequências," escreve, acrescentando que "mais uma vez ficou provado que políticos não podem dirigir o combate a epidemias".
O especialista em saúde pública critica ainda a decisão de encerrar os locais onde a população pode fazer exercício físico e apanhar sol, além da obrigatoriedade do uso de máscara por quem usa viseira e "o descalabro do recolher obrigatório todos os dias a partir das 21 horas, na área metropolitana de Maputo".
"Uma medida deste tipo tem muitas implicações logísticas e exige uma fiscalização educativa, dum tipo que a nossa Polícia não está preparada para fazer," critica. "Não posso ser tomado como cúmplice desta medida tão desacertada," dispara Hélder Martins.
"A minha decisão foi ponderada e está tomada," conclui o professor e especialista em saúde pública, Hélder Martins, ao final da sua carta de demissão da Comissão Técnico-Científica para Prevenção e Resposta à Pandemia de Covid-19.