Há académicos europeus a ajudar militares chineses?
20 de maio de 2022No vídeo promocional da Universidade Nacional de Tecnologia de Defesa da China (NUDT), soldados correm atrás de tanques, seguidos por professores uniformizados desta universidade de elite, que se dirigem a estudantes atentos.
"Dedicamos as nossas vidas à modernização do exército de defesa nacional", diz o narrador.
A NUDT é a alma mater de um estudante chinês que fez o seu doutoramento na Alemanha, onde conduziu pesquisas que podem ter tido aplicações militares.
No entanto, o professor alemão que supervisionou o doutoramento do estudante admitiu, num telefonema recente, que nunca tinha pensado muito na filiação militar do seu aluno.
O docente recorda um estudante amável e "brilhante", que se orgulhava de acolher no instituto de ciências informáticas onde dá aulas, numa pequena cidade universitária. Lamentou ver o estudante regressar à China, assim que a sua bolsa de estudos acabou.
Quando regressou à China, o estudante aceitou um emprego na Universidade Nacional de Tecnologia de Defesa.
O professor alemão pouco sabe sobre a natureza exacta da investigação do antigo aluno. "Quem está na NUDT", disse o docente à DW, "não pode falar sobre o seu trabalho".
Dirigida pela Comissão Militar Central do Partido Comunista, a NUDT desempenha um papel crucial na investigação militar, desde o desenvolvimento de armas hipersónicas e nucleares até supercomputadores quânticos, explica Alex Joske, um investigador independente que, até 2020, acompanhou institutos e laboratórios militares na China como analista do Instituto Australiano de Política Estratégica.
Da inteligência artificial à robótica
Sob a liderança da organização holandesa Follow the Money e da organização alemã de investigação sem fins lucrativos CORRECTIV, a DW e outras dez redações europeias colaboraram durante vários meses no âmbito do projeto China Science Investigation sobre as práticas de investigação académica chinesas. O grupo encontrou quase 3.000 publicações científicas de investigadores afiliados a universidades europeias e instituições homólogas ligadas ao exército na China - sobretudo a NUDT.
Embora alguns artigos possam estar relacionados com os mesmos projetos de investigação, o número global dá uma estimativa da extensão da cooperação.
As publicações conjuntas vão de temas como a inteligência artificial e robótica à investigação quântica: áreas que exploram o que muitas vezes se refere como tecnologias emergentes, preparadas para reformular a maneira como comunicamos, socializamos, conduzimos e até como ganhamos ou perdemos guerras.
Num futuro em que os países com os algoritmos e os computadores mais poderosos vão poder ditar a ordem mundial, não surpreenderá que a China, que não esconde a ambição de se estabelecer como superpotência global, esteja a apostar ativamente nesta perícia - o que inclui bolsas para investigadores chineses de topo estudarem fora do país.
E há pessoal militar entre eles, diz Joske. "Em trabalhos publicados, é possível encontrar também um oficial militar chinês que trabalhou e estudou numa universidade europeia e construiu uma relação que levou a estas colaborações e trabalhos de investigação", explica.
Como muitos estudantes chineses são financiados por bolsas de estudo do governo, a sua presença em institutos e grupos de investigação europeus é bem vinda.
Mais de 200 projetos na Alemanha
Quase metade dos estudos reunidos pela DW e parceiros nesta investigação foram publicados por cientistas e investigadores afiliados à NUDT em universidades do Reino Unido, Países Baixos e Alemanha. Neste último caso foram publicados pelo menos 230 artigos entre 2000 e o início de 2022.
A DW e os parceiros alemães CORRECTIV, Süddeutsche Zeitung e Deutschlandfunk encontraram várias publicações problemáticas. Os estudos foram realizados com investigadores da Universidade de Bona e da Universidade de Estugarda e através do prestigioso Instituto Fraunhofer em campos como a investigação quântica, inteligência artificial e visão informática.
A DW decidiu não divulgar os títulos dos trabalhos nem os nomes dos cientistas para protege-los de retaliação no país e no estrangeiro. É muito provável que haja mais documentos potencialmente polémicos.
Fins civis e de defesa
Vários investigadores independentes confirmaram que a investigação descrita nos artigos pode, de facto, servir tanto fins civis como de defesa ou segurança.
Um trabalho foi publicado em 2021, os restantes nos últimos cinco anos. Em alguns estudos, como num sobre o rastreio de grupos de pessoas, a aplicação é muito clara.
Ter-se-ia de "fazer um grande esforço para não ver aqui as aplicações de dupla utilização - não se pode excluir que possam ser utilizadas para localizar uigures", disse um investigador, referindo-se à minoria muçulmana que a China submeteu a um programa sistemático e forçado de "reeducação" em campos de detenção e vigilância generalizada.
O estudo foi publicado em conjunto com um investigador da NUDT que recebeu numerosos prémios militares antes da publicação.
Um outro estudo analisa a comunicação quântica encriptada. Vários peritos concordaram que, embora este campo esteja ainda numa fase muito precoce, a investigação pode eventualmente ter aplicações de dupla utilização, como a proteção da comunicação militar contra escutas.
Aplicação nem sempre é fácil de prever
As aplicações militares nem sempre são fáceis de identificar e ainda menos fáceis de prever. Os drones, por exemplo, podem ser utilizados para pulverizar campos com fertilizantes ou para abater os adversários numa zona de guerra.
A investigação científica é como uma torre construída a partir de uma grande pilha de peças da Lego. Cada investigador ou instituto adiciona uma peça de cor diferente até eventualmente surgir uma estrutura que se torna clara para todos.
A dificuldade em prever aplicações potencialmente problemáticas é particularmente aguda no campo da investigação geral, em oposição à investigação aplicada, que é conduzida com uma certa aplicação em mente.
Alex Joske confirma que a linha que separa estes dois tipos de investigação pode ser pouco clara: "Num ano trabalha-se em inteligência artificial e algoritmos para coordenar grupos de objetos e no ano seguinte essa mesma investigação poderá ser aplicada a drones militares, por exemplo".
E embora os cientistas possam ter em mente aplicações benignas, podem sempre ser cooptados - ou coagidos - a dar à sua investigação uma utilização diferente.
Na China, o omnipotente Partido Comunista acabou com a separação entre as esferas civil e militar: Qualquer qualquer pessoa pode ser mandatada para fins militares - incluindo cientistas.
O que dizem os regulamentos
Na Alemanha cabe a cada investigador determinar se a sua investigação tem de facto uma aplicação dupla. Se tiver, tem de solicitar uma licença de exportação para publicações conjuntas com cientistas sediados fora da União Europeia (UE) ou para conferências no estrangeiro ao Gabinete Federal para Assuntos Económicos e Controlo das Exportações (BAFA).
As universidades precisam de fornecer um certificado de utilização final que ateste uma utilização puramente civil. Mas, segundo disse à DW um oficial que trabalha nesta área, se esse certificado conta "é outra questão".
A DW e os seus parceiros enviaram a lista de publicações potencialmente problemáticas ao BAFA e às universidades envolvidas para saber se lhes tinham sido concedidas licenças de exportação. A BAFA recusou-se a comentar documentos individuais.
A NUDT também não respondeu às nossas perguntas.
Por escrito, um instituto alemão salientou que estava consciente da sua responsabilidade quando se tratava de "liberdade académica e riscos". Embora os funcionários se tenham recusado a comentar sobre documentos individuais, a universidade afirmou que cada caso foi cuidadosamente tido em conta, particularmente quando se tratava de "tópicos sensíveis de cooperação".
O porta-voz de outra universidade escreveu que os funcionários não estavam conscientes de qualquer "cooperação de investigação contratualmente acordada" com a NUDT. E acrescentou que a universidade tinha respeitado as leis e os regulamentos alemães.
Outra universidade salientou que o documento em questão foi escrito sem "envolvimento directo da NUDT" e que também se baseava em investigação básica que não implicava quaisquer "preocupações de dupla utilização".
"Vale tudo"
Quando se trata de investigação geral, não existem quaisquer restrições. "Vale tudo", disse outro oficial.
É certo que demasiadas restrições à investigação básica e a colaborações asfixiam o avanço científico. Mas eliminar todos os controlos pode representar riscos, diz a jornalista Didi Kirsten Tatlow.
Tatlow alerta contra o trabalho com a China em determinados campos, mas também admite que a cooperação científica não pode, nem deve, ser limitada. Em vez de tratar com desconfiança todos os investigadores chineses, a jornalista apela a controlos mais rigorosos quando se trata de investigação sobre potenciais tecnologias de dupla utilização e verificações de antecedentes de investigadores chineses, à semelhança dos já realizados com cidadãos iranianos.
Por enquanto, diz Tatlow, "a China sente que pode operar muito livremente em sociedades abertas como a Alemanha ou os Estados Unidos. E, de facto, pode, porque não estamos a impedir a maioria destes comportamentos". É como "uma criança numa loja de doces, que pode entrar e levar muitas coisas", conclui.
Piscar de olhos ocidental à China
Durante muito tempo, a cooperação com a China a todos os níveis foi encorajada nos países ocidentais - com a China vista como um vasto mercado económico a ser explorado.
A ideia era que fortes laços económicos, científicos e culturais conduziriam automaticamente a uma maior liberalização e democratização. Algo que não aconteceu.
Demorou algum tempo até que os sinais de aviso se infiltrassem na consciência pública através de relatos de internamentos ilegais e arbitrários de uigures em campos, das relações da China com regimes autoritários e da eliminação da oposição no continente e em Hong Kong.
Apenas nos últimos anos os políticos aparentemente começaram a ouvir os avisos das agências de segurança alemãs de que esta estratégia poderia de facto ter falhas. Em 2020, o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão começou a examinar mais de perto os pedidos de visto de investigadores chineses visitantes, apurou a DW. Contudo, as universidades parecem continuar a não ver motivos para mudar de rumo.
O cientista informático alemão que a DW entrevistou admitiu que nunca pensou na ligação do seu antigo aluno à NUTD - pelo menos até recentemente. Quando pressionado, admitiu que a pesquisa do estudante poderia ter aplicações de defesa.
Mas também disse nunca ter conhecido nenhum investigador estrangeiro que se comportasse de forma estranha. "Eu simplesmente não acredito que sejam pessoas más", confessou.