Mali: junta militar é aclamada por multidão em Bamako
21 de agosto de 2020Os militares que tomaram o poder no Mali "agradecem ao povo malinense pelo seu apoio" e "reconhecem-se" na luta da oposição, disse o porta-voz da junta nesta sexta-feira (21.08) perante milhares de pessoas reunidas em Bamako para celebrar a queda do Presidente Ibrahim Boubacar Keita.
"Viemos para vos agradecer, para agradecer ao povo malinense pelo seu apoio. Só terminámos o trabalho que iniciou e reconhecemo-nos na sua luta", disse o Coronel Major Ismaël Wagué, porta-voz do Comité Nacional para a Salvação do Povo (CNSP) criado pelos rebeldes militares, a uma multidão entusiasmada.
Milhares de pessoas reuniram-se em Bamako para celebrar o que os oposicionistas chamam de "vitória do povo", três dias após o golpe que derrubou o Presidente Ibrahim Boubacar Keita.
Muitos que participaram da celebração foram os manifestantes que desde junho exigiam a renúncia do Presidente Keita em atos organizados pelo Movimento do 5 de junho - Reunião das Forças Patrióticas (M5-RFP).
Os militares liderados pelo coronel do exército Assimi Goita encontraram-se com líderes políticos malianos e reiteraram o desejo de implementar uma transição. O grupo não deixa claro, porém, quanto tempo esta transição durará.
Missão da CEDEAO
Em entrevista à DW África, o comissário da União Africana (UA) para a Paz e Segurança, Smail Chergui, disse que a UA está disposta a conversar com todas as partes envolvidas na crise política.
"Temos de falar com eles [os rebeldes] para lhes dizer que eles têm de voltar a razão. [...]O Conselho de Paz e Segurança da União Africana tem sido muito claro e tomou a decisão de suspender a adesão do Mali à União Africana, como exigem a nossa doutrina e os documentos de referência da União Africana”, disse Chergui.
Uma missão da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) prevista para chegar a Bamako este sábado (22.08) será liderada pelo ex-presidente nigeriano Goodluck Jonathan, acompanhado pelo presidente da Comissão da CEDEAO, Jean-Claude Kassi Brou, e pelo ministro dos negócios estrangeiros do Níger, Kalla Ankourao. Esta sexta-feira, enquanto vários manifestantes bradavam palavras de ordem hostis à organização, os representantes da junta militar disseram que vão receber a missão da CEDEAO "com prazer”. Integrantes do bloco da África Ocidental defenderam na quinta-feira o retorno imediato de Keita à Presidência.
Integrantes da Missão das Nações Unidas no Mali (Minusma) reuniram-se quinta-feira com Ibrahim Boubacar Keita e outras personalidades detidas pela junta militar. O ministro das Finanças e Economia e um familiar próximo a Keita terão sido libertados, de acordo com uma fonte da junta militar.
Desde as primeiras horas do golpe militar de 18 de agosto, a CEDEAO condenou fortemente a ação dos militares rebeldes.
"Efeito dominó”
Seidik Abba, jornalista e escritor especializado na África Ocidental, acredita que a atitude da CEDEAO mostra o medo de uma espécie de "efeito dominó” pela região - com instabilidade política nos países vizinhos ao Mali.
Abba sublinha a situação pré-eleitoral "complicada” na Guiné Conacri, tensões pré-eleitorais também na Costa do Marfim e uma grave situação de insegurança no Níger. "Assim, existem situações de tensão na sub-região e a CEDEAO, ao agir desta forma, quis desencorajar todas estas tentativas que possam surgir noutros países”, sugere Abba em entrevista à DW África.
Já o ex-presidente da Assembleia Nacional do Burkina Faso, Mélégué Traoréque, não acredita que haja um "efeito contágio". "Não, não creio que tenha um efeito imediato no Burkina Faso. Não me parece. O que aconteceu foi muito malinense. Penso que não terá quaisquer repercussões no Burkina Faso ou no Níger, que são os dois países vizinhos", diz Traoré à DW África.
Os Estados Unidos suspenderam toda a cooperação com os militares do Mali até que a situação seja esclarecida. Os governos norte-americano e de outros países condenaram o golpe militar. O enviado dos Estados Unidos para a região do Sahel, Peter Pham, reiterou que os EUA condenam a queda de Keita, mas salientou que uma decisão sobre a designação formal às "ações de um golpe" deve passar por uma revisão jurídica.
Entenda a crise no Mali
Dezenas de milhares de pessoas protestam na capital Bamako desde junho contra o Governo do Presidente Ibrahim Boubacar Keita. A coligação M5-RFP, composta por grupos da oposição e da sociedade civil, organizou os primeiros protestos em massa a 5 e 19 de junho.
A 10 de julho ocorreu a terceira grande manifestação contra o Governo, apontada como a mais violenta desde 2012. Segundo o Governo, 11 pessoas morreram em três dias. A MINUSMA, por sua vez, contabiliza 14 manifestantes mortos, enquanto o M5-RFP relata 23.
Os motivos apontados para a crise política são a instabilidade da segurança no centro e norte do país, a estagnação económica e a corrupção. Considera-se, no entanto, que o episódio que inflamou o movimento de contestação foi a invalidação pelo Tribunal Constitucional de cerca de 5,2% dos votos expressos nas eleições legislativas. A decisão anulou os resultados provisórios de 31 dos 147 assentos no Parlamento e acabou por aumentar a representação do partido de Keita em dez lugares.
Ibrahim Boubacar Keita foi eleito em 2013 e reeleito em 2018 para mais cinco anos. O M5-RFP o acusa de ter falhado na sua missão e apelou várias vezes à sua saída do poder. Após uma pausa nos protestos do M5-RFP e quando o Governo se movimentava para a formação de um governo de unidade nacional, a 18 de agosto de 2020, Keita sofreu um golpe de Estado e foi detido por militares rebeldes. A junta militar anunciou a pretensão de realizar eleições e uma "transição política civil".