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Marcos Mavungo: "Atrocidades são o nosso quotidiano"

10 de dezembro de 2016

Segundo o ativista Marcos Mavungo, no que toca os Direitos Humanos, Angola é um "iceberg": só se vê a ponta das atrocidades cometidas. No enclave de Cabinda, a violação dos direitos fundamentais é uma constante, afirma.

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Menschenrechtler Marcos Mavungo
Foto: DW/J. Carlos

"Não há sinais de mudança", diz José Marcos Mavungo em entrevista à DW África a propósito do Dia Mundial dos Direitos Humanos, que se celebra este sábado, 10 de dezembro. O advogado e ativista cabindês relata as atrocidades cometidas pelo regime do Presidente José Eduardo dos Santos naquele território, cuja riqueza em petróleo, afirma, é sistematicamente espoliada pelo Governo de Luanda.

Mavungo, que está em Portugal por razões de saúde, saiu em liberdade da prisão de Cabinda em maio de 2016, depois de ter sido condenado a uma pena de seis anos de prisão por crime de rebelião contra o Estado angolano.

DW África: Sendo defensor ativo dos Direitos Humanos, como avalia a situação em Angola?

Marcos Mavungo (MM): Neste momento, em Angola, vive-se um certo ceticismo inteletual, um certo desencanto. Parece-me que o partido no poder já perdeu a noção da justiça e da dignidade. Já não tem referências governativas suscetíveis de combater a pobreza, repor os direitos civis, políticos, sociais e económicos das populações. Por exemplo, quando cidadãos que têm direito à manifestação não são aceites e muitos são assassinados. É o caso de Isaías Cassule e Alves Kamulingue. Também há sempre interdições de manifestações, a criação de dificuldades às instituições de defesa dos direitos humanos. Diante destes atropelos todos, não conseguem assumir uma posição justa no sentido de defender a legalidade. Tudo isso são situações graves que põem em causa os fundamentos do Estado.

DW África: Apesar da pressão internacional não há sinais de mudança?

MM: Até ao momento não há sinais de mudança. Já se fala da possível saída do Presidente da República, embora as pessoas estejam céticas, mas o que parece significar mudanças. Mas mudança no sentido de aceitar as leis da convivência democrática, de aceitar os princípios da transparência, os princípios da independência dos tribunais, parece-me que a classe política dominante não tem ainda essa predisposição, neste momento.

DW África: Foi uma das vítimas das atrocidades cometidas pelo regime de Luanda. Confirma que continuam a registar-se casos de violação dos direitos humanos em Cabinda?

MM: Sim, é o nosso quotidiano. O poder confiscou para si os meios da comunicação social, todo o dinheiro do país. Ninguém fala. No dia 26 [de novembro] devia haver uma manifestação [em Luanda]. Mas o Governo fez tudo para impedi-la. Além disso, a imprensa privada não está na capital. O que significa que, no interior do país, há situações muito graves que não chegam a público. E quando chegam, às vezes já é tarde. O quotidiano é uma violação constante.

Angola Provinz von Cabinda José Marcos Mavungo Aktivist
Marcos Mavungo em 20 de maio de 2016, o dia em que o Tribunal Supremo ordenou a sua libertaçãoFoto: Privat

DW África: Digamos que aquilo que sai para a imprensa internacional é apenas uma parte destas violações?

MM: Sim, exato. Neste momento Angola é um iceberg, em que a maior parte está submersa. Não é reportada.

DW África: Foi libertado a 28 de maio de 2016, depois de ter sido condenado a uma pena de seis anos por crime de rebelião contra o Estado angolano. Foi uma acusação injusta? Isso terá tido alguma repercussão na sua vida pessoal ou profissional?

MM: A minha detenção e condenação são práticas constantes que o regime sempre utilizou para calar vozes incómodas, para calar pessoas que se levantam, espíritos não reverentes que apontam o dedo e levantam questões, que difundem informações. Tudo isto esteve na base da minha prisão e condenação. Por causa dos atropelos em Cabinda, da má governação da riqueza que se concentra e não se reparte, pensámos em organizar uma manifestação, o que é conforme à própria lei. Mas, infelizmente, o Governo opôs-se e, como agravante, mandou-me prender, depois de me ter encontrado com os seus representantes a 11 de março [de 2016], de lhes ter feito o ponto da situação das violações em Cabinda - os assassinatos, a má governação, as prisões arbitrárias - na base de factos concretos. Numa reunião em que estava o governador, num Estado de direito democrático, tinha que se abrir um processo, mas não aconteceu. Fui detido. E o mais grave ainda é que mobilizaram agentes da polícia, falsificaram processos, como o roubo de explosivos no Malongo e tantas outras falsidades. Tudo isto simplesmente para me mandar prender, obrigar-me a calar e não levantar a cabeça. Portanto, o meu caso é um exemplo concreto.

DW África: Pode-se afirmar que há, de facto, guerra em Cabinda?

MM: Bom, há guerra em Cabinda por cinco razões fundamentais. A primeira tem a ver com a questão de Cabinda, que não encontra uma solução. Ainda temos guerrilheiros que estão nas matas. Por isso mesmo, Cabinda é um território militarizado. A segunda questão são as injustiças: detenções arbitrárias, má governação, falta de transparência. A paz é sinónimo de justiça. Quando não há justiça, não há paz.

Menschenrechtler Marcos Mavungo
Mavungo, à direita, com os músicos Luaty Beirão (esquerda) e Waldemar Bastos (centro)Foto: DW/J. Carlos

A outra questão é a espoliação sistemática das riquezas de Cabinda. Nessa espoliação, o Governo não tem em conta os direitos que ligam os cabindas à sua própria terra. Então não se pode falar de paz. Temos também a questão do funcionamento das instituições da Justiça. Os procuradores envolvem-se em atos que constituem um atropelo à justiça quando sabem que um cidadão é inocente e o condenam, quando sabem que há roubo do erário público e não fazem nada. O Tribunal de Contas existe, mas até agora nunca ouvi que um governador foi questionado ou levado ao tribunal. Então, tudo isto faz com que haja um conflito [armado] em Cabinda.

DW África: A retoma da guerrilha visa pressionar o Governo de Luanda a seguir a via do diálogo?

MM: Sim, este é o objetivo da guerrilha. Mas, neste momento, a resistência tem encontrado várias dificuldades. Só que não posso afirmar que a solução vai tardar, porque os comportamentos humanos são imprevisíveis. E penso que não sou eu a dizer que isto vai ser resolvido amanhã. Mas o que é certo é que há dificuldades e a situação permanece. Não há vontade séria por parte do Governo para resolver o problema de Cabinda.

DW África: O facto de existirem vários movimentos e fações - no exterior e no interior - que falam em nome do povo de Cabinda, como é o caso da FLEC, não constitui um entrave ao processo de negociações sobre o futuro do enclave?

9.12 Entrevista Mavungo OL - MP3-Stereo

MM: O problema das divisões não é um apanágio dos cabindas. É um problema que sempre existiu em todas as lutas de libertação. No caso concreto de Cabinda, é um problema que já durou muito tempo, que criou muitos problemas. Há problemas que o Governo cria. Há problemas que os próprios cabindas enfrentam nesta caminhada. É normal que isto venha a criar divisões, várias versões, vários pontos de vista. Mas eu penso que o grande problema não reside aí. O grande problema reside, sobretudo, na vontade política. Aquando da independência de Angola havia três movimentos de libertação. Cada movimento tinha o seu programa, tinha a sua própria visão, tinha a sua própria ideologia. Mas isto não impediu que o Governo português se sentasse com os três movimentos de libertação.

DW África: Acredita que uma possível reviravolta na liderança de Angola, com a eventual retirada de José Eduardo dos Santos em 2018, trará mudanças e esperanças para o povo de Cabinda?

MM: Isto é o que nós esperamos. Há uma aspiração para a mudança em toda a parte. As pessoas já estão saturadas com o regime. Já há cada vez mais vozes que se levantam em toda a parte de Angola. Também há outros sinais de mudança. O próprio problema económico. Nota-se o problema da falta de divisas, o funcionamento da economia, as medidas que o Governo toma já não são eficientes. Como no tempo da União Soviética, há a tendência de se nomear novas figuras. Eu creio que tudo isto abre perspetivas para a mudança. E nós temos esperança que essas mudanças possam trazer alguma coisa.

DW África: A propósito de futuro, qual é o seu desejo: autonomia ou independência?

MM: Primeiramente, não tenho um discurso político. Tudo quanto temos vindo a afirmar é que a questão de Cabinda existe e que é consequência de uma descolonização desastrosa. Eu sempre defendi que era necessário resolver o erro dos Acordos de Alvor. Eu creio que toda a solução para a questão de Cabinda deve ser fundada na justiça e na dignidade dos povos. É necessário que se faça justiça ao povo de Cabinda. Se o povo de Cabinda tem direito à autodeterminação, eu creio que se está a cometer um erro ao encher o território de militares para poder resolver o problema com a força das armas. Esta é a minha perspetiva.

DW África: Então, caberá ao povo decidir o futuro…

MM: É verdade, é isso mesmo.

 

 

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