Rafael Marques: "o poder em Angola apoia-se na corrupção"
1 de julho de 2014Na cidade de Bona, decorre desde ontem, segunda-feira, até quarta-feira, 30.06., o “Global Media Forum” organizado pela DW. Participam jornalistas de todo mundo. Um deles é o angolano Rafael Marques do portal Maka Angola, parceiro da DW África. Em entrevista exclusiva à DW, Rafael Marques fala sobre a cumplicidade de empresas estrangeiras na corrupção em Angola, com destaque para o caso do Banco Espírito Santo - BES - de Portugal.
DW África: Pode dar exemplos de empresas estrangeiras envolvidas em esquemas de corrupção em Angola?
Rafael Marques (RM): E eu gosto de dar exemplos específicos. Em 2010 eu denunciei a situação do Banco Espírito Santo. Esse banco português tinha vendido 24 por cento das suas ações a indivíduos da guarda presidencial. Eu na altura citei os nomes. Os nomes constavam todos no diário da República. Quem estava por trás era naturalmente o chefe da casa de segurança do presidente, o general Kopelipa, e também o atual vice-presidente, Manuel Vicente. Eles estavam a utilizar os guardas como testas de ferro. Pagaram 375 milhões de dólares, e eu questionei de onde é que retiraram esse dinheiro. Houve uma investigação em Portugal que não deu em nada. Agora houve a revelação de que desapareceram do Banco Espírito Santo em Angola mais de 5 mil milhões de dólares, quase seis mil milhões de dólares. O dinheiro não desapareceu, foi distribuído entre os membros da elite do MPLA e alguns portugueses, que também beneficiaram desse dinheiro. Esta instituição Banco Espirito Santo que era uma instituição venerável em Portugal acabou no descrédito total e envolvida nos esquemas mais simplistas de corrupção que pode haver, porque não havia nenhum sistema para controlar minimamente o fluxo de empréstimos e a quem se emprestava o dinheiro. Eu conheço um caso de alguém que disse: olha, enche-me a conta. E depositaram-lhe 80 milhões na conta, sem assinar papel nenhum de transação, sem pedir formalmente empréstimo! Quando levantamos estes casos não é para desencorajar os investidores estrangeiros, mas sim para alertar que, a médio e longo prazo, empresas reputadas que se associam a este tipo de negócios, acabarão por ter problemas sérios. Há casos de indivíduos que investem em Angola sem haver segurança jurídica. Fazem um investimento e daí a um tempo um general, ao qual se associaram, ou mesmo a família presidencial decidem que a parceria tem que ser em moldes diferentes. E vão ao notário e trocam as percentagens. Isso também acontece. Estamos a ver o caso da Portugal Telecom que investiu na maior empresa angolana de telecomunicações, a Unitel, hoje a maior empresa privada em Angola, com a filha do presidente da República. E a Portugal Telecom há dois anos não recebe os seus dividendos! Porque a filha do presidente agora quer a Portugal Telecom de fora do negócio. Mais: a própria Portugal Telecom foi obrigada a revelar aos reguladores portugueses e americanos que a Isabel dos Santos regularmente vai aos cofres da empresa e retira várias centenas de milhões de dólares para financiar as suas outras empresas, ao arrepio dos estatutos da empresa e das regras básicas de gestão.
DW África: O presidente e a sua família são, portanto, parte integrante do esquema?
RM: Eu tenho feito investigações sobre os atos de corrupção, e sobretudo envolvendo o presidente da República, e praticamente o presidente encontrou um modelo para transferir recursos do Estado para a sua família através de decretos presidenciais. E o último decreto aconteceu em maio passado: a Sonangol transferiu 10 por cento das suas ações num bloco de petróleo para a titularidade da irmã mais nova do Presidente da República, conhecida como “Mana Marta”, a Marta dos Santos.
DW África: Existem leis em Angola que teóricamente proibem isso...
RM: Sim existem essas leis. O presidente não pode usar os seus poderes para enriquecimento pessoal da sua família utilizando recursos do Estado. É a forma abusiva e totalmente aberta com a qual o Presidente trata o património do Estado, como sendo sua propriedade privada.
DW África: No entanto, em 2009 o Presidente anunciou uma política de tolerância zero perante a corrupção. Será que essa política de tolerância zero só é aplicada em casos de corrupção de baixo nível?
RM: Na verdade é uma política que tem um sentido perverso, porque o que de facto passou a haver a partir de 2009 foi uma política de tolerância zero perante todos aqueles que denunciam a corrupção. Nós olhamos hoje para as instituições do Estado e todos aqueles que no seu quotidiano procuram denunciar certas situações negativas são afastados. Hoje a corrupção é a principal instituição com a qual o presidente mantém o seu poder. O governo de Angola criou um sistema através da corrupção paternalista de distribuição de recursos. O presidente destruiu o tecido social angolano. Ao nível da saúde as coisas estão assim. Em teoria os serviços de saúde são gratuitos, mas os cidadãos quando chegam ao hospital para serem atendidos têm que corromper os médicos, os enfermeiros e o pessoal de serviço. Há dias eu soube de um caso no hospital de pediatria: as senhoras que têm lá os seus filhos e têm que passar a noite com os seus filhos hospitalizados para utilizarem as casas de banho têm que pagar. Então existe corrupção a todos os níveis da sociedade. A luta contra ela torna-se difícil. Porquê? Porque o funcionário público já habituado a viver de esquemas que não advêm do seu salário. Então muitos cidadãos pensam que havendo mudanças vão perder esses privilégios. Outros cidadãos esperam ter também a oportunidade de enriquecer ou de entrar na função pública ou de ascender a cargos para fazerem exatamente o que os outros fazem. Angola transformou-se numa lotaria e criou-se a ilusão de que o indivíduo, se tiver o apoio do presidente ou do partido no poder, pode ganhar a lotaria e ascender a um cargo, mesmo sem ter conhecimentos nem qualificação, e enriquecer facilmente.
DW África: Até que ponto empresas estrangeiras e representantes de países estrangeiros contribuem para que se mantenha o nível de corrupção em Angola?
RM: Tudo isso não seria possível sem a cumplicidade ativa e proativa das empresas estrangeiras. Porque esse sistema requer muito dinheiro.