"O poder de compra do moçambicano fica comprometido"
27 de abril de 2022O Conselho de Ministros de Moçambique aprovou novos salários mínimos, com um aumento mais baixo de 3,6% e mais alto de 7,6%.
De acordo com a nova tabela, o ordenado mais baixo em Moçambique é pago na pesca de kapenta, que passa a ser de 4.591 meticais (o equivalente a cerca de 67,5 euros) e o mais alto entre os mínimos vigora nos serviços financeiros, que está fixado em 14.340 meticais (cerca de 210 euros).
A economista moçambicana Estrela Charles lamenta que o Executivo não tenha tido em conta a subida dos preços dos produtos alimentares e dos combustíveis, nem as crescentes dificuldades das famílias.
Em entrevista à DW África, a consultora financeira sublinha que o poder de compra dos moçambicanos fica ainda mais comprometido, tal como a cesta básica. Ainda assim, considera que há espaço para o Governo tomar medidas para amenizar o impacto da inflação nos agregados mais pobres.
DW África: O Governo moçambicano aumentou os salários mínimos, mas de forma muito residual. O salário mais baixo, por exemplo, aumentou apenas 371 meticais (cerca de cinco euros). Como é que fica o poder de compra dos moçambicanos?
Estrela Charles (EC): O poder de compra do moçambicano fica comprometido. Aliás, já estava comprometido mesmo antes desse reajuste salarial, que nem podemos considerar como tal, visto que é um ajuste mínimo, muito inferior ao aumento do preço dos principais produtos alimentares. Realmente, será muito complicado.
Há também o agravante do aumento do preço dos combustíveis que tivemos no mês passado. Então, tudo isso coloca de facto em causa a cesta básica e o poder de compra dos moçambicanos.
DW África: Ou seja, o Governo com estes aumentos não está a ter em conta os impactos sociais que prometem ser devastadores no país?
EC: Não, não teve em conta. E é pena que o comité sindical não tenha tido muito peso ao longo da negociação. O comité sindical fez uma proposta de 30.000 meticais, mas foi aprovada uma proposta de 4.591 meticais (cerca de 67,5 euros), o que mostra que as reclamações do sindicato não foram tidas em conta, muito menos a situação económica do país.
DW África: O Governo diz que estes novos ordenados traduzem o atual momento económico e social que o país atravessa. Invoca, por exemplo, as calamidades naturais e o terrorismo em Cabo Delgado. Concorda com esta justificação do Governo?
EC: De maneira nenhuma. Essas justificações não se enquadram porque são fatores que ocorrem há mais de cinco anos. Quando falamos, por exemplo, da guerra em Cabo Delgado, estamos neste processo desde 2017. Não faz sentido também falarmos de ciclones quando são fenómenos a que Moçambique está suscetível há anos, além de que essa questão já está prevista no Orçamento do Estado.
O que o Governo devia fazer era tentar ajustar o salário mínimo de acordo com a subida dos preços. De recordar que tivemos ainda, no mês passado, o aumento das taxas de juro. Ou seja, são vários fatores que tornam cada vez mais difícil a vida e o poder de compra do cidadão moçambicano.
DW África: Acha que o Governo está, de certa forma, "encurralado"? Ou ainda tem alguma margem para tomar medidas para amenizar este impacto da inflação nos agregados mais pobres em Moçambique?
EC: Eu acredito que ainda há muito espaço de manobra, principalmente quando falamos do preço do combustível. Existem tarifas e taxas que o Governo pode reduzir, ou mesmo eliminar, da estrutura do preço, para poder reduzir o preço do combustível. Por essa via, também podermos ter alguma redução no preço de alguns bens, principalmente os produtos alimentares. Tivemos um aumento do preço do pão, do óleo... Ou seja, dos principais produtos que compõem cerca de 30% ou mais daquilo que é a cesta básica moçambicana. E ainda há espaço para o Governo poder tomar algumas medidas que possam aliviar o poder de compra do cidadão.
DW África: Moçambique aposta muito nos megaprojetos. Acha que está na altura do Governo olhar mais para a diversificação da economia?
EC: Podemos continuar a apostar nos megaprojetos, mas temos de olhar mais para as áreas sociais como a educação e a saúde. Podemos também tentar incentivar a agricultura. São áreas que foram deixadas de lado, principalmente nesses últimos anos, porque os custos da guerra foram incrementados. Há valores que poderiam ser usados para outros setores, mais produtivos, mas estão a ser encaminhados para questões da guerra, para o pagamento das "dívidas ocultas". Então, são realmente vários fatores que, quando conjugados, acabam por sacrificar aqueles que têm um rendimento mais baixo.