Orfã do "27 de maio de 1977" reclama justiça
26 de novembro de 2018A visita do Presidente de Angola, João Lourenço, a Portugal, de 22 a 24 deste mês, foi ocasião considerada propícia por Ulika Gisela da Paixão Franco dos Santos apresentar um pedido de auscultação pública, na qualidade de órfã do "27 de maio de 1977".
No texto que enviou a várias entidades, incluindo a Embaixada de Angola em Portugal, a cidadã de origem angolana evoca a honra do seu pai, Adelino António dos Santos (mais conhecido por Betinho entre os amigos), que lutou pela independência de Angola e acusado de "fracionismo".
De acordo com os documentos na posse da família, o nacionalista angolano ligado ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) foi preso, torturado e fuzilado pela então DISA, polícia política do regime de Luanda, e atirado em vala comum, oficialmente a 25 de junho de 1977. Na altura, Ulika Paixão que tinha apenas 14 meses, disse à DW, antes do episódio de sábado (24.11.) na conferência de imprensa de João Lourenço ainda em Lisboa."Este pedido de auscultação pública vem da minha parte, filha de duas vítimas do 27 de maio de 1977: o meu pai e a minha mãe [Umbelina de Jesus Viana da Paixão Franco dos Santos]. Ele foi morto mas ela, colateralmente, sofreu os danos. Eu só me lembro de a minha mãe ter um companheiro quando eu tinha mais de 20 anos e já trabalhava. Até lá eu sempre vi a minha mãe sozinha, a cuidar de mim sozinha, a usar aliança e a usar um fio com uma pérola que o meu pai lhe tinha dado".
Solicitação sem resposta
Facto é que Ulika Paixão, que solicitou um encontro com o Presidente angolano, não obteve resposta alguma quanto ao seu pedido de auscultação.
"Exatamente, eu tentei com alguma antecedência, não foi respondida. Portanto, comuniquei com várias entidades responsáveis governamentais, quer a nível do Governo de Portugal quer a nível do Governo de Angola. À exceção do Gabinete do primeiro-ministro de Portugal, Sua Excelência Dr. António Costa, ninguém me respondeu".O pedido de auscultação foi endereçado a vários organismos angolanos e portugueses, entre os quais os ministros da Justiça de Angola e de Portugal. Esta manhã(26.11.), limitada por razões de saúde, ela explicou à DW África, por telefone, quais as razões que a levaram a interromper a conferência de imprensa que o Presidente João Lourenço dava no último sábado, 24, no final da sua visita a Portugal.
"Por motivos pessoais, por 41 anos de silêncio e por não acreditar escrever mais uma carta, entre as muitas que já foram escritas durante este 41 anos fosse mudar as coisas, é que eu tomei a decisão que tomei".
Leitura de um poema
E porquê ler um poema do 27 de maio na conferência de imprensa de João Lourenço?
"Eu lamento que a poesia se tenha tornado incómoda para os jornalistas ou para seja quem for. Portanto, eu dirigi-me a ele com o maior dos respeitos, nunca ultrapassei a bolha de privacidade, não utilizei vernáculo e nem utilizei gíria. Achei que a forma mais rápida de fazer passar a minha mensagem não era expor a vida, nem a minha nem a do meu pai e nem a da minha mãe, para ler um pequeno poema do meu pai que resumia tudo aquilo pelo qual eu passei, pelo qual a minha mãe passou e pelo qual várias pessoas que estão no exílio são obrigadas a passar."
O poema intitula-se "CATARSE", publicado no livro "Poemas dos Campos de Morte" por Adelino dos Santos, cujo pseudónimo literário era "Kolokota". Foi escrito na Cadeia de São Nicolau, em setembro de 1973, enquanto esteve preso pela PIDE, polícia política portuguesa.
27 de maio de 1977 - tema tabu?
No sábado, depois do episódio durante a referida conferência de imprensa em que não foi permitido à cidadã angolana ler o poema, João Lourenço foi questionado a propósito sobre o delicado dossier "27 de maio de 1977".
"É um dossier delicado porque, naquela ocasião, Angola perdeu alguns dos seus melhores filhos. O Estado angolano já reconheceu em diversas ocasiões – a última das quais muito recentemente, há dias atrás, na voz do ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, perante o Parlamento, Casa do Povo onde estão representados todos os partidos políticos – ter havido excessos por parte do Governo naquela altura e de estarmos abertos ao diálogo para vermos de que forma, não obstante terem passado décadas deste triste acontecimento, como podemos reparar as feridas profundas que ficaram nos corações de muitas famílias".
As famílias das vítimas e movimentos da sociedade civil angolanas já pediram a João Lourenço a restituição dos restos mortais e a elaboração de uma lista dos desaparecidos. Entre outras reivindicações, querem igualmente um pedido público de desculpas.
Só quando tinha 40 anos de idade, Ulika Paixão veio a saber toda a verdade sobre a morte do seu pai, depois de uma sessão de hipnose a que foi sujeita por causa de traumas. Agora que o novo Governo angolano reconhece os excessos cometidos no âmbito dos acontecimentos que se seguiram ao aludido golpe de Estado de 27 de maio de 1977, a cidadã angolana pede apenas isto."Em vida, passados 41 anos, eu não quero que o Governo angolano levante as ossadas, porque acho que é doloroso, acho que é custoso. O que eu quero é que o Governo angolano faça um memorial, ou que faça um jardim com lápides dos nomes das pessoas, onde as crianças possam brincar; ou com os nomes dos mortos inscritos nas árvores para que eu possa depositar os lírios brancos que eu tenho [guardado] para o meu pai, finalmente num local que eu sei onde ele, ainda que fisicamente não esteja, possa estar espiritualmente".
Filha de "fracionista"
Ulika Paixão, lembra que tem sido destratada por ser uma portuguesa filha de um "fracionista".
"Isto custa-me muito. Eu estive este ano em Angola a convite do AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal), por ocasião da visita do primeiro-ministro de Portugal [António Costa], e tentei falar com as instituições, que não me abriram a porta, porque eu sei que o facto de eu ser filha de um homem que esteve preso pela PIDE, que foi torturado, que lutou pelo Movimento Popular de Libertação de Angola, que foi dirigente responsável da juventude do MPLA, que foi radialista, que defendeu Agostinho Neto, ainda assim morreu, foi fuzilado. Não nos deram direito ao corpo, não nos deram direito ao luto, colocaram a minha mãe em liberdade condicional, obrigaram-me a ser evacuada, doente, para Portugal, de forma clandestina (…)".
Como filha de uma das vítimas, Ulika (que significa "sozinha" na língua nacional umbundo) ainda guarda a dor pelo desaparecimento físico do seu pai. Acredita no atual contexto de abertura política para uma verdadeira reconciliação com a história de Angola, mas "sem retirar dinheiro do orçamento do Estado ou uma única vacina a uma criança". A reconciliação nacional não deve traduzir-se em custos, mas deve ter "o significado de unir, de pedido de desculpas e de assumir as culpas", precisa.