'É por aqui que o Parlamento da Guiné-Bissau tem de começar'
26 de julho de 2023O novo Parlamento da Guiné-Bissau entra em funções esta quinta-feira (27.07). Depois de uma paragem forçada de mais de um ano, devido à sua dissolução, há questões profundas por resolver, e a responsabilidade recai sobretudo na coligação PAI-Terra Ranka, liderada por Domingos Simões Pereira, que conquistou a maioria absoluta nas eleições de junho.
Para Carmelita Pires, antiga ministra da Justiça do país, os desafios para a restauração do Estado democrático de Direito são "muitos", "sérios" e "urgentes".
Em entrevista à DW África, a jurista defende a convocação de um debate parlamentar urgente para revogar as medidas "inconstitucionais" tomadas pelo Presidente Umaro Sissoco Embaló no último ano, sublinhando que o chefe de Estado já não pode dissolver o novo Parlamento.
A retirada imediata da força militar da CEDEAO estacionada no país deveria ser uma das primeiras decisões a tomar pelos novos deputados, defende ainda Carmelita Pires.
DW África: Porque acha que o Parlamento deve debater com urgência a saída das tropas estrangeiras da Guiné-Bissau?
Carmelita Pires (CP): Não era suposto termos forças estrangeiras no nosso país. A nossa Constituição não permite que não seja o órgão soberano representativo deste povo a debruçar-se sobre estas questões que têm que ver com a entrada de exércitos estrangeiros no país. E é o que se passa neste momento. [O assunto] não foi à Assembleia, que foi dissolvida a 16 de maio do ano passado.
Portanto, naturalmente que uma das [minhas propostas] tem a ver com a retirada imediata e incondicional das tropas estrangeiras na Guiné-Bissau em proteção da soberania, porque a permanência dessas tropas não [respeita] minimamente os padrões fundamentais desta República.
DW África: À luz da Constituição, a Assembleia é capaz de deliberar sobre este assunto?
CP: A Assembleia tem todos os expedientes, quer ao nível constitucional, que ao nível da regulamentação interna, com o seu próprio regimento, para convocar extraordinariamente um debate de urgência e analisar as questões relacionadas com o facto de estarem tropas estrangeiras inconstitucionalmente na Guiné-Bissau.
DW África: Por que motivo é que também propôs à nova Assembleia declarar inexistente, à luz da Constituição, o acordo de petróleo celebrado entre a Guiné-Bissau e o Senegal?
CP: O acordo foi suspenso. Mas o que nos chega é o acordo assinado e uma série de empresas com interesses. Lamentavelmente, mais uma vez, as regras e as formalidades não foram observadas. O próprio primeiro-ministro [Nuno Gomes Nabiam] do governo de gestão demissionário veio dizer que não foi ouvido. Ora, acontece que é da exclusiva competência do Governo negociar estas questões. Não foi o que aconteceu.
A própria Assembleia, antes de ser dissolvida, já se tinha pronunciado. Trata-se apenas de reforçar esta questão em observância da Constituição da República e dos interesses nacionais, porque este acordo peca por insuficiência técnica-jurídica, mas também ao nível do princípio de reciprocidade, que é um dos pilares da nossa Constituição na relação com os outros Estados. A Guiné-Bissau sai a perder.
DW África: Estes desafios poderão colocar o Presidente da República, Umaro Sissoco Embaló, em maus lençóis, ao ponto de pensar em dissolver o Parlamento e atirar o país para uma nova crise política?
CP: Não há condições ao nível do direito constitucional para dissolver a Assembleia, porque ela não pode ser dissolvida um ano depois da investidura dos deputados, nem seis meses antes do fim do mandato do Presidente.
Os nossos deputados, que são representantes de todos os cidadãos da Guiné-Bissau, têm a oportunidade de pôr cobro a determinadas situações que foram contra os dispositivos constitucionais desta República. Naturalmente que isto pode conflituar com os interesses de um outro órgão de soberania, a Presidência da República. Mas para nós não é isso que está em causa. O que está em causa é a soberania, é a Guiné-Bissau e uma esperança para o desenvolvimento.