"É preciso dessacralizar o relato nacionalista de Angola"
24 de março de 2018O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) está a atravessar mais uma fase crítica da sua história, marcada por um complexo período de transição, após as últimas eleições gerais de 2017. A direção do partido no poder confronta-se com a questão da bicefalia na sua liderança, sendo clara a disputa entre o ex-Presidente José Eduardo dos Santos e o atual chefe de Estado, João Lourenço.
O historiador congolês Jean-Michel Mabeko Tali, professor convidado da Universidade de Howard, nos Estados Unidos, afirma que nas atuais condições do país este é um problema "muito delicado". "Tudo dependerá como o MPLA vai gerir a crise", diz, em entrevista à DW, no dia em que apresentou em Lisboa, Portugal, a versão mais aprofundada do seu livro "Guerrilhas e Lutas Sociais – O MPLA perante Si Próprio (1960-1977)".
O livro de Jean-Michel Mabeko Tali, apresentado esta sexta-feira (23.03) na Fundação Cidade de Lisboa pelo professor Alberto Oliveira Pinto, é uma nova edição da obra lançada em 2001, que tinha como título "Descendência e Poder do Estado – O MPLA Perante si Próprio".
A atual versão, mais alargada, reúne novos elementos de análise sobre o contexto político angolano desde a luta armada até a data de realização do congresso do MPLA, em dezembro de 1977.
"Tentei trabalhar, sobretudo, sobre o discurso político da elite angolana, a importância desse discurso, bem como sobre todas as jogadas à volta da questão das datas da fundação dos movimentos de libertação e porque é que há tanta polémica à volta disso", explica o autor, que procurou ir para além da simples cronologia dos factos.
Uma questão de "legitimação"
Na obra, lançada sob a chancela da editora Mercado de Letras, o historiador nascido na República do Congo Brazaville "enfatiza a questão da legitimação de cada um dos atores nesse processo (…) para se poder valorizar nesse mercado político angolano", procurando legitimar-se a si próprio como grupo. Este é um dos aspetos do debate acalorado sobre a fundação dos movimentos de libertação e que acabou por marcar a vida política em Angola, destacando-se o papel chave da elite que dirige o país desde a independência a 11 de novembro de 1975.
Agostinho Neto, o primeiro Presidente de Angola, é uma figura de destaque nesse processo, que a dada altura tomou as rédeas do movimento de libertação e marcou com a sua personalidade o seu percurso. Mas, antes dele, lembra Jean-Michel Tali, "temos todo o processo que levou ao surgimento do MPLA", com figuras também relevantes, como Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz, Lúcio Lara, entre outros, no "grupo que realmente lançou o movimento".
No livro, o historiador amigo de Paulo Lara – filho de Lúcio Lara – trata de rever os grandes acontecimentos que marcaram o período da sua investigação, entre os anos 60 e 70. E ressalta os acontecimentos que levaram ao 27 de maio de 1977, "evento que, de certa maneira, mudou a vida política em Angola, de forma terrível". O académico congolês da geração dos anos de 70, que leciona sobre História Política na Universidade Howard, acha que até hoje ainda se vive as consequências desse período conturbado da História do país.
Tentativa de tomada do poder
Os massacres, as torturas, as prisões e perseguições ou as purgas são temas fraturantes da sociedade angolana, que eram e ainda são tratados como tabu. "Voltei ao tema porque no momento em que comecei a trabalhar sobre esta temática ninguém queria falar", explica.
"Hoje as memórias se abrem, as pessoas falam um pouco mais, há algumas publicações sobre isso", adianta. Foi assim que buscou, por exemplo, os arquivos soviéticos, cuja documentação permite entender a extensão e a complexidade da relação do Estado angolano com a União Soviética, mas também, voltando atrás, da relação do MPLA com os soviéticos.
Sobre a alegada tentativa falhada de golpe de Estado ou não, ou sobre a ação do movimento fracionista nitista dentro do MPLA, tem havido muita discussão, reconhece o historiador: "Tento relançar o debate".
Na sua leitura dos factos, defende que se tratou, sem dúvidas, de "uma tentativa de tomada de poder mal organizada, um pouco caótica e improvisada, mas com consequências gravíssimas". Sobretudo porque levou ao desaparecimento, não só físico, de uma geração política. "Depois, o partido tentou recuperar alguns deles, mas isto foi uma tragédia que ainda está latente; vive-se ainda hoje", avalia. Ainda sobre aquele período da história angolana, o investigador concorda, de certa maneira, com aqueles que afirmam que o 27 de maio "foi um grande ajuste de contas" político.
Conflitos internos
A história do MPLA, desde o início da luta armada de libertação, é marcada por conflitos internos. "Esses conflitos internos justificam os vários assassinatos que houve desde os anos 60, quer nas cidades quer nas matas", explica o académico. No livro, ele tenta explicar também numa longa análise por que razão o movimento não conseguiu sanar tais conflitos internos.
O 1º congresso do MPLA, em dezembro de 1977, acontece numa situação quase que de emergência, depois da violência que rodeou os acontecimentos do 27 de maio. Mas, o resultado do referido evento não foi o que se esperava. "O próprio [Agostinho] Neto não estava contente com o resultado, dada a situação do movimento, do partido-Estado, que tinha que gerir uma crise interna", diz Jean-Michel Tali.
Naquela época, Angola havia optado por seguir a via socialista. A surpresa, segundo o autor congolês, é que os soviéticos não terão influenciado esta decisão, tanto é que, para os serviços secretos (KGB), Agostinho Neto era visto como uma ovelha ranhosa, teimosa, mas necessária. "Não foram os soviéticos que disseram a Neto para optar pela via socialista. Ao contrário do que se pensava antes, hoje os documentos provam que os soviéticos estavam com um pé atrás", revela.
Dessacralizar o relato histórico
Na conversa com a DW, o investigador exorta o partido no poder em Angola a reconciliar-se com a sua própria história, deixando de fazer dela um tabu. "As feridas ainda são muito recentes, mas, de certa maneira, é preciso dessacralizar o relato da gesta nacionalista de forma a deixar as pessoas se expressarem", apela o académico que integra uma comissão científica da UNESCO encarregue pela produção da história contemporânea de África.
"Lembro que quando comecei o inquérito havia quem não queria falar porque tinha medo de responder as perguntas. Isso resultava de ressentimentos antigos dos que vinham da guerrilha, que achavam que estavam a ser discriminados", explica.
No entanto, o diferendo ainda não foi sanado. Jean-Michel Mabeko Tali recorda, por exemplo, a velha disputa entre a FNLA e o MPLA sobre a verdadeira data do início da luta armada: a 4 de fevereiro de 1961 ou a 15 de março do mesmo ano. O historiador critica, por outro lado, a geografia de escolha ou definição do mártir, que não pode ser apenas de um dos movimentos que lutaram pela independência de Angola.
Contra a discriminação, dá outro exemplo: "ando à procura de uma Rua Viriato da Cruz e não encontro". Lamenta ser este mais um problema, porque "ele foi um dos membros fundadores do MPLA, uma figura chave e incontornável” na história de Angola. E diz mais. "É difícil para um professor dar aulas sobre aquele período sabendo do papel de Viriato da Cruz e não falar disso porque tem medo. Reconciliação também é isso".
Por isso, adverte, "a reconciliação nunca será completa se não dermos valor àquilo que os outros fizeram". Para Jean-Michel Tali, o relato histórico tem de deixar de ser uma espécie de tabu, para que a nova geração possa perceber e saber o que se passou. "Se não se fizer isso, na minha opinião, vai ser difícil ir mais além".
O historiador concorda com uma frase do nacionalista angolano Mário Pinto de Andrade, quando afirmou que "ninguém pode negar a história, mas tem de se falar com realismo".