A resistência do Reino Unido em acolher civis ucranianos
8 de março de 2022O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, tem publicado mensagens sobre a guerra na Ucrânia praticamente a cada hora em sua conta no Twitter. Ele aparenta estar tentando exercer um papel mais relevante entre os principais atores internacionais em torno da guerra – pelo menos na percepção midiática.
No fim de semana, Johnson propôs um plano com seis pontos que vão desde uma coalizão global de trabalhadores humanitários até pressões econômicas crescentes e uma ofensiva diplomática. No entanto, o que não estava incluído em sua lista é a admissão de refugiados de guerra da Ucrânia.
No fim de semana, o ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, escreveu uma carta em tom irritadiço à sua homóloga britânica, Priti Patel. Centenas de refugiados ucranianos estariam na cidade francesa de Calais impossibilitados de viajar ao Reino Unido. No controle fronteiriço, os refugiados estariam sendo impedidos por autoridades britânicas com a instrução de que eles deveriam solicitar um visto num consulado.
O posicionamento britânico seria "completamente inadequado" e mostra uma "falta de humanidade", escreveu o ministro francês a Patel. Cerca de 400 ucranianos haviam chegado a Calais nos últimos dias – dos quais 150 foram impedidos de seguir viagem e ordenados a ir primeiro a Bruxelas ou Paris. "É imperativo que haja um posto consular na fronteira, especialmente durante esta crise, para emitir vistos imediatos de reagrupamento familiar", pleiteou Darmanin.
Nesta terça-feira (08/03), após impasses e tensões, o governo britânico finalmente anunciou que está montando um centro de solicitação de vistos para refugiados ucranianos – mas não em seu território: na cidade de Lille, no norte da França, a cerca de 110 quilômetros de Calais.
A carta do ministro francês à secretária do Interior do Reino Unido é a mais recente truculência entre franceses e britânicos sobre política migratória, apenas poucos meses após uma discussão acalorada sobre o acúmulo de migrantes em Calais que buscavam a travessia do Canal da Mancha em pequenos barcos.
Londres acusou Paris de não adotar medidas suficientes para minar as operações dos contrabandistas que organizam as tais travessias ilegais. O governo francês, por sua vez, condenou Londres por não disponibilizar meios legais pelos quais os migrantes poderiam entrar legalmente em território britânico.
Londres emite apenas 50 vistos
Segundo os números mais recentes da ONU, mais de 2 milhões de ucranianos já fugiram da guerra, majoritariamente crianças, mulheres e idosos. Desse total, cerca de 1,2 milhão de refugiados foram para a Polônia e 300 mil, para a Romênia, dos quais cerca de metade chegou pela pequena Moldávia. Enquanto isso, mais de 140 mil chegaram à Eslováquia e quase 200 mil cruzaram para a Hungria.
Na Alemanha, cerca de 50 mil refugiados ucranianos já foram registrados, embora o número real provavelmente seja maior porque não há formalidades de entrada no país.
Na sexta-feira passada, a União Europeia (UE) criou um regulamento especial sem precedentes sob o qual os ucranianos podem receber proteção nos países-membros do bloco europeu por até três anos, incluindo autorização de trabalho e seguro de saúde.
Em contrapartida, a regulamentação britânica aparenta particularmente mesquinha: ela basicamente está limitada ao reagrupamento familiar – um programa de ajuda bastante restrito já que no Reino Unido vivem apenas cerca de 18 mil ucranianos. De acordo com dados divulgados pelo próprio governo britânico na segunda-feira, o Reino Unido havia emitido até então apenas 50 vistos de entrada para refugiados ucranianos.
"Temos procedimentos em vigor para aqueles que têm parentes da Ucrânia. Mas o Reino Unido apenas começou com isso [autorização de entrada]. A maioria das pessoas está em países vizinhos e nós ajudamos onde estão os problemas", disse o secretário de Estado britânico, James Cleverly, em entrevista à emissora Sky News. "Se eles querem ir ao Reino Unido, temos duas opções: reunificação familiar e patrocínio." A segunda opção permite que comunidades ou indivíduos assumam uma espécie de responsabilidade pelos refugiados ucranianos.
As críticas a esses critérios estritos foram ficando cada vez mais fortes. No fim de semana, a deputada trabalhista Yvette Cooper escreveu o seguinte em seu Twitter: "O primeiro-ministro afirma que já temos 'dois caminhos muito generosos'. Mas apenas 50 vistos foram concedidos. O outro caminho [patrocínio] ainda não está aberto. É uma vergonha total. Famílias ucranianas desesperadas são afastadas e deixadas sozinhas em sua hora de necessidade".
Contradições entre Patel e Johnson
No decorrer da segunda-feira, o governo de Londres afundou em completa confusão. O tabloide britânico The Sun citou o Departamento do Interior britânico dizendo que "uma outra rota humanitária com governos parceiros" estava sendo explorada.
Mas o primeiro-ministro imediatamente contradisse a declaração de Patel num comunicado televisivo. "O que não vamos fazer é introduzir um sistema pelo qual as pessoas possam vir ao Reino Unido sem serem controladas ou verificadas", disse Johnson.
E o porta-voz do primeiro-ministro reiterou em comunicado as duas formas vigentes de entrada em território britânico: reagrupamento familiar e apadrinhamento. Nada além disso estaria planejado.
E as críticas à tal conduta não provêm apenas da oposição, mas cada vez mais também dos próprio correligionários. O presidente do Comitê Conservador de Relações Exteriores, Tom Tugendhat, por exemplo, não ficou em cima do muro ao ser questionado em entrevista à emissora de rádio LBC sobre a recepção de refugiados ucranianos no Reino Unido.
"Definitivamente não é um sucesso, não é? Precisamos ter certeza que o Departamento de Estado está fazendo seu trabalho para podermos apoiar aqueles que mais precisam", disse Tugendhat.
E o líder do Conselho Britânico de Refugiados, Enver Solomon, escolheu palavras inequívocas para criticar a postura do governo. "Quando algo assim acontece em Calais [a rejeição de refugiados] é repulsivo e mostra uma perturbadora falta de compaixão. Demonstra o ambiente hostil de nosso sistema de apoio a refugiados", disse Solomon.