O incomum no cotidiano
23 de julho de 2008Na corrida do dia-a-dia, brasileiros e alemães pouco têm em comum, ao menos na opinião do escritor alemão Ingo Schulze. "Quando um brasileiro se sente ameaçado pela criminalidade em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo, passa por experiências bem diferentes das vividas por um alemão que se sente ameaçado", afirma o autor conhecido como um dos principais representantes do movimento literário Wenderoman, centrado no tema da reunificação alemã.
De volta de uma viagem ao Brasil, durante a qual participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Schulze disse à DW-WORLD.DE que seus contos suscitaram reações "bonitas" do público brasileiro, cujas experiências de vida são "diferentes" das dos europeus. "Quando li em voz alta o conto Nada de literatura ou epifania no domingo ao entardecer, surgiram perguntas bem distintas daquelas a que estou acostumado", disse Schulze, referindo-se a uma questão sobre a religiosidade das epifanias vividas por seus personagens.
Por outro lado, Schulze acha que o público brasileiro se identificou com sua obra. "Tive a impressão de que as pessoas no Brasil conhecem situações como a que relato em Nada de literatura...", afirma o escritor, primeiro alemão a participar da Flip. "O medo, por exemplo, é um sentimento que une mesmo as nações mais distintas, como a brasileira e a alemã. É uma experiência que não é tão diferente para os dois povos", diz Schulze.
O conto Nada de literatura... faz parte da coletânea Celular – Treze Histórias à Maneira Antiga, lançada no Brasil no início do mês. A história relata como, num domingo à tarde, uma menina acha uma casca de laranja jogada no jardim por um transeunte que passa do outro lado do muro. A descoberta da casca de laranja é observada pelo pai da criança. O narrador vê no achado da filha o milagre da existência humana – um relato que mostra como Schulze procura contar experiências fora do comum no cotidiano das pessoas.
Para o escritor, situações como essa não precisam se restringir a um país em especial. "Quem escreve sempre fala de si mesmo, e eu espero que a minha produção literária também tenha algo em comum com alguma experiência cotidiana dos brasileiros, por exemplo", diz Schulze.
Abordagem corporal fascina o escritor
Foi a segunda vez que Schulze visitou o Brasil. A primeira foi em 2002, durante o lançamento da versão brasileira de Histórias Simples da Alemanha Oriental. Desta vez, o medo onipresente da violência chamou a sua atenção.
Mas também foi a primeira vez que ele teve um contato tão próximo com os leitores. "Paraty foi fascinante. Nunca tantos leitores falaram comigo, querendo tirar fotos. Adorei a abordagem 'corporal' dos brasileiros, essa coisa de tocar as pessoas", conta.
O alemão ainda conhece poucos autores brasileiros. Mas Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, foi uma grande influência no seu romance Neue Leben (Novas Vidas). “Adoro os contos dele, foi uma grande descoberta quando o li há alguns anos. De Grande Sertão: Veredas, adaptei uma cena de invocação do diabo num cruzamento", explica. Neue Leben será a próxima obra de Schulze a ser lançada no Brasil (ainda sem previsão).
No mês que vem, Schulze lança um novo romance na Alemanha, Adam und Evelyn. A obra tragicômica brinca com o mito bíblico de Adão e Eva, que Schulze transporta para o verão europeu de 1989. Na Hungria em que a Cortina de Ferro começa a se abrir, os protagonistas se vêem obrigados a decidir entre o mundo antigo que conhecem e o suposto paraíso do Ocidente.