Uma mulher pede um lanche pelo delivery. O entregador, um jovem negro, avisa, quando chega, que vai deixar o pedido na portaria. A mulher se revolta, já que esperava que ele fosse subir e entregar em mãos. O entregador decide voltar para o restaurante com o pedido. O marido da moça, um policial militar, vai com ela atrás do trabalhador. Chegando lá, ele discute com o entregador, que filma tudo. O policial dá um tiro no jovem.
Essa história parece o enredo de um filme-denúncia que carrega muito nas tintas para fazer uma crítica ao capitalismo em tempos de "uberização" e ao ódio de classe nos nossos tempos. Mas é uma história real. O caso aconteceu na semana passada na Vila Valqueire, um bairro de classe média da zona oeste do Rio de Janeiro. O homem que atirou (na frente de várias testemunhas) é o cabo da Polícia Militar Roy Martins Cavalcanti. O entregador é Nilton Ramon Barromeu de Oliveira, que tem 24 anos e trabalha para o iFood há três anos.
Oliveira passou por duas cirurgias e segue internado em um hospital. O policial não foi preso, o que, infelizmente, não surpreende brasileiros que conhecem bem o país e estão acostumados com a impunidade que protege muitos, com destaque para os PMs. Ele alega "legítima defesa", sendo que era o único armado. Testemunhas divergem da versão do PM.
No vídeo da discussão, antes do tiro, é possível ver o rapaz falando: "sou trabalhador, filho". E o polical respondendo: "Trabalhador é o c*. Vai tomar no teu c*".
Essa história assustadora é o ataque mais violento de clientes a entregadores que aconteceu até agora, desde que serviços como o iFood se tornaram populares.
Mas não foi a única vez em que cidadãos que encomendam comidas agridem, atacam e ofendem entregadores por essa razão fútil: eles não subiram para entregar a comida que vossa autoridade, o senhor do castelo, encomendou. Pelas regras do iFood, os entregadores não são obrigados a subir. Mas as "sinhás" e os senhores não estão acostumados a ouvir "não" e agem tal qual crianças mimadas.
Em janeiro, outra situação insana aconteceu no Rio de Janeiro. Uma moradora de um condomínio em São Conrado, um bairro de elite da cidade, apareceu na portaria do seu prédio e ameaçou o entregador Gabriel Jesus, de 21 anos, com um facão usado para cortar carnes e ossos. Assim como seu colega Nilton, Jesus foi esperto e filmou a cena. No vídeo, é possível ver a "senhora" falando: "todo mundo sobe, o que deu em você, por que você não pode subir?".
É difícil, realmente, entender como é possível que uma pessoa ameace outra com um facão (ainda mais por um motivo desses). Ameaçar com uma faca um trabalhador só porque ele disse que não deixaria a comida diretamente na sua mão?
Qual é o problema dessas pessoas em pegar um elevador e retirar um pacote na portaria do prédio onde moram?
Casa Grande e Senzala
Esses dois casos são chocantes, mas, repito, apenas ilustram um fenômeno supercomum, que acontece frequentemente no Brasil. Essa é uma nova epidemia. Ou uma nova versão do comportamento "casa grande e senzala" da classe média brasileira.
Sim, só o fato dessas pessoas terem sido acostumadas a tratar prestadores de serviço como seus servos justifica essa insanidade. E só em um país com um passado escravocrata ainda muito presente na sociedade uma atitude como essa pode virar uma "tendência".
Essas pessoas parecem seguir a regra: "eu paguei, então vocês têm que fazer tudo que eu quero". Vou além. Para essa gente, os outros, que prestam serviços para eles, são vistos como inferiores mesmo.
O ódio aos "entregadores que não sobem" não é muito diferente do chororô que dominou parte da classe média brasileira há cerca de dez anos, quando muitas empregadas domésticas começaram a ter oportunidade de cursar uma universidade. "Está difícil encontrar babá", reclamavam.
Hoje, parte da frustração dessas pessoas, talvez com suas próprias vidas, é descarregada contra entregadores. E não só contra eles. Basta ver como muitas empregadas domésticas (o Brasil é o país com o maior número desse tipo de profissional em todo o mundo, o que explica muita coisa) e faxineiras são tratadas.
A influenciadora Verônica Oliveira, da página Faxina Boa, ex-faxineira, escreveu no Instagram um desabafo sobre o ataque do PM ao entregador e relembrou os horrores que passou quando fazia faxina. "De onde vem esse ódio? Essa vontade de espezinhar uma pessoa no cumprimento do seu dever?", perguntou.
Ela lembrou dos tempos em que foi faxineira e "ouviu e viu violências" e diagnosticou: "o ódio de classe faz com que as pessoas se sintam à vontade para se sentirem superiores àqueles que estão nos atendendo, ainda que sejam da classe trabalhadora. O ódio cega. É aquele negócio: o oprimido vira opressor".
Infelizmente, ela tem toda razão. E fica difícil não esperar que esse tipo de absurdo se repita. Se a sociedade não mudar, os entregadores continuarão arriscando suas vidas se se recusarem a pegar um elevador e entregar o pedido em mãos. É chocante, mas entregar encomendas para uma classe média à beira de um ataque de nervos e com formação escravocrata virou uma profissão de risco. Essas pessoas estão provando, mais uma vez, que se acham civilizados mas, na verdade, se comportam como bárbaros.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.