Quem é a pessoa do ano? Aquela que se destacou, marcou e vai ser lembrada como o "rosto" de 2024? De acordo com a revista Time, que anualmente lança uma tradicional capa com a "personalidade do ano", referência no mundo ocidental, essa pessoa é Donald Trump, presidente reeleito dos Estados Unidos.
A escolha gerou revolta em muitas pessoas, que não acham que Trump, um extremista de direita, mereça tal destaque. O protesto não é só pela escolha do presidente americano, mas pelo fato de muita gente achar que quem devia ocupar o posto e a capa da revista é a francesa Gisèle Pelicot.
Concordo totalmente. A pessoa do ano, aquela que nos inspirou e marcou com sua coragem gigantesca, não é a escolhida pela Time, mas sim a dona de casa francesa de 72 anos Gisèle, que virou um símbolo da luta pelo combate à violência sexual contra mulheres. Ela sim fez algo marcante que pode mudar a vida de muitas.
Trump ganhou as eleições. Mas um homem milionário alcançar ainda mais poder com suas pautas contra imigrantes e mulheres não é uma novidade. Infelizmente, isso tem acontecido bem mais do que os democratas do mundo gostariam.
Já Pelicot fez algo único. O que Gisèle passou é tão horrível que é difícil de imaginar: ela foi sedada entre 2011 e 2020 pelo seu então marido, Dominique Pelicot, que a oferecia na internet para estranhos, que a estupraram desacordada. Ele ainda filmou os atos horrendos.
Gisèle poderia ter ficado escondida com a sua dor, o que seria totalmente compreensível, mas decidiu colocar a cara no mundo para denunciar seus algozes, a violência que sofreu e dar o recado de que vítimas de estupro não devem ter vergonha. Quem precisa se envergonhar são os estupradores. "A vergonha precisa mudar de lado", ela disse, uma frase que já se tornou um símbolo.
E ela realmente fez "a vergonha mudar." Pelicot não só denunciou o marido e seus cúmplices, como, de cabeça erguida, contou, perante um tribunal, tudo que tinha passado. E ainda permitiu que vídeos horríveis que haviam sido feitos sem o seu consentimento fossem exibidos.
"Eu queria que todas as mulheres vítimas de estupro afirmassem: se a senhora Pelicot fez isso, nós podemos fazer", disse ela, em outubro. Com certeza, seu gesto fez com que muitas vítimas se sentissem acolhidas e representadas.
A coragem de Gisèle deu resultado. No dia 19 de dezembro, seu ex-marido foi condenado a 20 anos de prisão, a pena máxima para esse crime na França. Outros 50 homens também foram considerados culpados. Do lado do tribunal, milhares de mulheres exibiam cartazes em apoio a Gisèle e flores para essa grande dama.
A francesa, que merece todas as homenagens, está na capa da revista Vogue alemã de dezembro. Merecidíssimo. Mas deveria estar ainda em mais lugares como um exemplo de esperança e força.
Rebeca Andrade e Eunice Paiva
Estamos todos precisando de exemplos inspiradores, já que 2024 foi marcado por coisas ruins e muitas delas foram protagonizadas por homens (entre eles, Trump, a personalidade do ano da Time). Elas são tantas que nem cabem neste espaço. Mas no caso do Brasil, por exemplo, esse foi o ano da gente voltar a sentir orgulho do país vendo Rebeca Andrade brilhar nas Olimpíadas, onde a ginasta brasileira ganhou quatro medalhas, entre elas a de ouro no solo.
O momento mais forte dos Jogos Olímpicos foi protagonizado por ela e mais duas mulheres: Simones Biles, a maior ginasta do mundo, e Jordan Chiles. Quando Rebeca foi receber sua medalha de ouro, as duas americanas se ajoelharam no pódio fazendo reverência à Rebeca. A imagem rodou o mundo como exemplo de mulheres apoiando mulheres e de união entre meninas negras. Essa foi a primeira vez na história que um pódio de ginástica artística foi dominado apenas por mulheres negras. Emocionante e poderoso.
E o ano termina com o Brasil torcendo para outra mulher que serve de inspiração: Fernanda Torres, a atriz de 59 anos indicada ao Globo de Ouro (e muito provavelmente ao Oscar) por sua interpretação de Eunice Paiva, no filme Ainda Estou Aqui. Eunice, que foi presa no Dops e viu seu marido "desaparecer" nos porões da ditadura, também é um exemplo de força que inspira, já que lutou no meio da ditadura pela verdade e, depois, foi trabalhar defendendo os direitos de indígenas. As coisas não estão fáceis, mas essas mulheres nos dão um pouco de esperança para 2025.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.