Como é possível que um ser humano entre com seu carro em um mercado de Natal e atropele uma multidão, incluindo crianças, de propósito? É difícil de aceitar e entender mesmo, mas foi o que aconteceu na sexta-feira (20/12), quando cinco pessoas morreram e mais de 200 ficaram feridas em um ataque a um mercado de Natal em Magdeburg, no leste da Alemanha.
O país entrou em choque. Não tem como não ficar triste quando uma coisa assim acontece perto de você. Mas junto com a tristeza, uma tempestade de notícias falsas tomou conta das redes sociais. E milhares de pessoas acreditaram nelas. A polícia ainda não havia informado nada sobre o suspeito, mas nas redes, principalmente no X, já havia certeza de que ele era sírio, que o ataque teria sido feito por um radical islâmico e que a culpa era da política de refugiados de Angela Merkel.
Ou seja, para muitas pessoas, a tragédia já estava "resolvida", eles já tinham a quem odiar: os imigrantes, principalmente os refugiados muçulmanos.
Logo a mídia informou que o suspeito não se enquadrava exatamente na categoria que tantas pessoas imaginavam. Taleb A. entrou na Alemanha em 2006 como estudante, virou refugiado em 2016, mas trabalhava como psiquiatra, tinha visto permanente e era simpatizante de ideias da extrema direita, as mesmas usadas por aqueles que afirmavam que o ataque tinha acontecido por causa da "islamização da Alemanha".
Ele se apresentava como anti-islamista, apoiava o partido de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD) e era fã do bilionário Elon Musk.
O que aconteceu em seguida? Perfis de extrema direita, e também cidadãos comuns, continuaram divulgado (e muitos acreditando) que o atentado tinha motivação islamista, apesar de todas as evidências (e da polícia) dizerem outra coisa.
"A mídia tradicional mente novamente", publicou no sábado o dono do X, Elon Musk, na plataforma. Ele compartilhou um post que falava "nós não odiamos a mídia o suficiente" e elencava manchetes de meios de comunicação sérios, como os canais "NBC" e "France 24", que diziam a verdade: o suspeito era islamofóbico. Uma das manchetes diz: "Oficiais dizem que suspeito tinha visões islamofóbicas". Ou seja, ele não acredita nem na imprensa, nem nos investigadores e policiais.
A lógica de Musk, e da extrema direita em geral, é: "Se o que aconteceu não é o que eu queria e não serve aos meus interesses, então eu não acredito na notícia, afinal, a imprensa mente." O pior é que milhares de pessoas pensam como ele.
No mesmo dia, a frase "allahu akbar" (deus é maior, em árabe), atribuída a vários terroristas em ataques, ficou em primeiro lugar no X da Alemanha. Milhares de pessoas compartilharam um vídeo onde o suspeito está no chão, sob a mira de policiais armados. Elas afirmavam que o acusado tinha dito a frase em árabe ao ser preso. Não é verdade. É só ouvir com atenção para perceber que ele fala "okay, alles klar" (ok, tudo certo) para os policiais. Mas em tempos de manipulação, cada um ouve o que quer.
Claro que tudo isso não acontece por acaso. Os radicais de direita usam isso como estratégia política. É importante lembrar que as próximas eleições para o Parlamento alemão acontecem em menos de dois meses e a principal bandeira da AfD é a pauta "anti-imigração".
Mas além da política, muitos cidadãos comuns acreditam nessas mentiras e as compartilham. Afinal, acreditar em mentiras e manipulações propagadas nas redes sociais parece ser mais confortável do que encarar a realidade cruel de que existem vários tipos de radicalizados e de terroristas. Eles não estão todos na mesma caixa e não têm a mesma religião e nacionalidade. As coisas são mais complicadas do que isso.
Não existe solução fácil e o perigo pode estar perto da gente. É difícil mesmo acreditar nessa realidade e todos nós (independente da posição política) sentimos tristeza e medo quando um ataque cruel assim acontece. Mas vale mais encarar a realidade. Se você for ler sobre o atentado, cheque as fontes de notícias. Não acredite naquele vídeo que você recebeu no zap. Isso vale para a Alemanha de hoje, mas para o Brasil, no geral, também.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.