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"Bolsonaro lucrou se aliando com a política tradicional"

8 de outubro de 2022

Bolsonarismo soube usar ferramentas digitais para fazer trabalho de base e foi impulsionado ainda mais com o apoio da máquina partidária, segundo cientista social Marcos Nobre.

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Jair Bolsonaro ao lado de cabine de votação
Recursos da política tradicional ajudaram a levar Bolsonaro para o segundo turnoFoto: ANDRE COELHO/AFP/Getty Images

O bom desempenho do presidente Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições é resultado de uma combinação de atuação digital e de política tradicional, avalia Marcos Nobre, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professor do departamento de filosofia da Unicamp.

"Bolsonaro apelou para alguém que sabe fazer política tradicional, que pega recursos de campanha e consegue transformá-los em mais votos. Junto com isso houve uma atuação paralela dessa máquina de desinformação e propaganda do partido digital bolsonarista", afirma Nobre.

O pesquisador atribui ainda o sucesso eleitoral de Bolsonaro e seus aliados no primeiro turno ao "trabalho de base" do "partido digital bolsonarista", expressão que usa para se referir à militância aguerrida reunida no entorno do presidente. "A mensagem bolsonarista entra em grupos de mães, em discussões de grupos religiosos, de pessoas que procuram emprego – redes de solidariedade de todo tipo."

Em entrevista à DW Brasil, Nobre analisa também o cenário pós-eleitoral e alerta para o risco real de uma guinada autoritária no Brasil, caso Bolsonaro vença o segundo turno.

"Vamos ter um cenário húngaro: com a confiança nas instituições democráticas sendo minada no primeiro mandato para, num segundo mandato, efetivamente fechar o regime por dentro", destaca o autor do livro Limites da Democracia, uma análise da política brasileira desde as jornadas de Junho de 2013 até os dias atuais.

DW Brasil: O que explica o bom desempenho da direita bolsonarista no primeiro turno?

Marcos Nobre: Houve uma aliança com a política tradicional – com o PL do Valdemar Costa Neto, PP e Republicanos, além de partidos menores como PTB e PSC. Bolsonaro apelou para alguém que sabe fazer política tradicional, que pega recursos de campanha e consegue transformá-los em mais votos. Junto com isso houve uma atuação paralela dessa máquina de desinformação e propaganda do partido digital bolsonarista.

É uma combinação de política tradicional e elementos novos digitais. De um lado, tem a política tradicional; de outro, interesses mais diretos do partido digital bolsonarista. Uma estrutura potencializa a outra. Às vezes elas entram em conflito, mas na maioria dos casos elas se complementam. Um exemplo desse conflito é a corrida pelo Senado em Brasília: tinha a candidata do PL, que é o partido de Bolsonaro, mas o partido digital bolsonarista atuou o tempo todo pela eleição da Damares [Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que foi eleita pelo Republicanos].

Tem também o poder da máquina partidária e do governo. Bolsonaro é o presidente, não dá para desconsiderar isso. Isso gera uma potencialização da votação do PL que é muito impressionante – desde 1998 que não tinha uma bancada desse tamanho [no Congresso].

E por que esse partido digital bolsonarista é eficiente?

O partido digital bolsonarista atua na esfera institucional, em conjunto com a política tradicional, mas também está no cotidiano das pessoas. Há muita fantasia sobre o que é esse tipo de organização em rede partidária, porque as pessoas acham que são grupos de WhatsApp, Telegram e TikTok só sobre política. Isso não é verdade.

A mensagem bolsonarista entra em grupos de mães, em discussões de grupos religiosos, de pessoas que procuram emprego, que precisam trocar coisas – redes de solidariedade de todo tipo. Os antigos partidos faziam isso, que é conhecido como trabalho de base – e é o que o bolsonarismo faz. Essa é a sua força. Não é só um partido, uma máquina de desinformação e propaganda que está descolada da vida das pessoas. De jeito nenhum. Está lá, no cotidiano. E é por isso que consegue eleger.

E a esquerda?

O campo progressista acha que basta chegar nas pessoas e dizer o que é o mundo ideal que elas automaticamente vão se converter. Não é uma postura de convencimento; é uma postura de chegar para dar lição. Perderam a tecnologia e a capacidade de fazer trabalho de base. E fazer trabalho de base é conversar de verdade. É chegar lá para ouvir, ser escutado, respeitar a posição e saber que a pessoa, depois de horas de conversa, pode manter a mesma posição que tinha antes.

Progressistas quando encontram alguém que não vota no ex-presidente Lula e diz "Lula é ladrão", viram as costas e vão embora, dizem que não dá para conversar. Tem que discutir, levar a sério. Se esse é o ponto de partida, não se conseguirá nunca mesmo convencer ninguém.

O bolsonarismo age diferente?

O bolsonarismo faz isso, ele convence aqueles que não estão primeiramente convencidos, faz trabalho de base. Tem essa diferença. Acho que é uma diferença grave, porque mostra que o partido digital bolsonarista tem enraizamento e representatividade na sociedade.

Votar em Bolsonaro não significa ser autoritário. Pelo contrário. Cerca de 15% do eleitorado é efetivamente autoritário. É um grupo grande, mas de maneira alguma chega aos 43% que votaram no Bolsonaro. Colocar todo mundo no mesmo saco é abrir mão de fazer política.

Caso Bolsonaro perca a eleição, qual é o futuro dessa extrema direita que ele personifica?

Bolsonaro, num primeiro momento, vai ser o líder da oposição porque ele tem a hegemonia do campo mais amplo da direita. E o tipo de oposição que ele vai fazer é muito diferente do que já se viu no Brasil, porque é uma oposição que não está preocupada em ganhar a próxima eleição. Não que ele não queira ganhar, não é isso. Mas essa não é a preocupação central, então não há limites para o tipo de oposição que você pode fazer. É uma oposição, em termos democráticos, totalmente desleal, feroz.

Temos uma situação hoje em que o campo da direita no Brasil é hegemonizado pela extrema direita. Vai surgir uma nova direita democrática para disputar essa hegemonia? Porque se isso não acontecer, teremos um governo que vai ter como principal opositor a extrema direita, e não a direita. E isso implica um risco autoritário permanente para o país.

O que seria essa oposição desleal?

Existem algumas limitações para uma oposição que é democraticamente leal, que segue as regras da alternância de poder democrático – porque quando ela chegar ao poder, vai ter que ser capaz de entregar aquilo que criticou no outro. No caso da extrema direita, como o objetivo não é a democracia, você pode dizer absolutamente qualquer coisa. Não há limites. O projeto não é meramente eleitoral. A eleição é só uma escadinha para chegar ao seu objetivo, que é destruir a democracia – nesse esquema característico do autoritarismo da década de 2010, que são autoritarismos pela via eleitoral, e não mais golpes clássicos.

E se o Bolsonaro for reeleito, o que esperar?

Vamos ter um cenário húngaro, seguindo esse modelo estabelecido pela Hungria, [nos moldes dos] autoritarismos da década de 2010: com a confiança nas instituições democráticas sendo minada no primeiro mandato para, num segundo mandato, efetivamente fechar o regime por dentro.

Como?

Primeiro, assumindo o controle da maioria da suprema corte – no caso, do Supremo Tribunal Federal. Já tem uma emenda na Câmara para aumentar de 11 para 15 o número de ministros. Aumentando de 11 para 15, o Bolsonaro já indicou dois, indicaria mais quatro [mais os sucessores de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, que se aposentam em 2023, totalizando oito ministros], e ele teria maioria no STF. Na sequência, você faz uma reforma legislativa que te dá maioria parlamentar mesmo você não tendo a maioria dos votos.

Você começa a impor restrições para aquelas parcelas do eleitorado que não fazem parte do seu bastião de votos – por exemplo, os mais pobres –; faz um projeto de centralização do controle das polícias; mantém elementos tipicamente ditatoriais, como o orçamento secreto; oficializa uma polícia secreta; asfixia a imprensa; começa a restringir as críticas de todos os lados. Vai sufocando as pessoas cada vez mais – na universidade, na imprensa – e tem um fechamento progressivo do regime por dentro.

Isso já vem sendo preparado no primeiro mandato: sete em cada dez brasileiros têm medo de emitir as suas opiniões, medo de violência. Isso já é uma vitória enorme do bolsonarismo, [que] quer infundir nas pessoas o medo de se expressar livremente.