Cenário externo pressiona Câmara a votar quebra de patentes
18 de maio de 2021A mudança de ventos no cenário internacional em relação à quebra de patentes de vacinas contra a covid-19 – com o apoio histórico dos Estados Unidos à medida e a União Europeia sinalizando que pode seguir a mesma linha – pode impulsionar a votação na Câmara dos Deputados de um projeto de lei sobre o assunto, a qual poderá ser realizada ainda nesta semana numa comissão permanente.
Desde maio do ano passado a maioria do colégio de líderes partidários aprovou na comissão especial da covid-19 o envio, ao plenário, de um projeto de lei que autoriza o governo brasileiro a decretar a licença compulsória temporária de patentes – conhecida como quebra de patente – de vacinas e medicamentos contra a covid-19. Porém, o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nunca pautou a matéria.
Há dezenas de projetos no Congresso sobre o mesmo tema, e todos eles foram reunidos no PL 1462, que se tornou referência por ser o texto mais robusto na Câmara. Além da postura internacional, a criação da CPI da Pandemia e a aprovação, no Senado, de um projeto que permite a quebra de patentes, está sensibilizando os políticos num momento em que aumenta no Brasil a pressão por mais vacinas.
No final de abril, o Senado aprovou um substitutivo (projeto original modificado, com emendas de vários parlamentares) de um projeto lei que permite ao governo federal ter 30 dias para elaborar uma lista de patentes e pedidos de patente em curso de vacinas e medicamentos para a covid-19 que poderão ter licença compulsória.
Esse texto aprovado no Senado chegou na semana passada à Câmara dos Deputados e vai ser incorporado aos demais projetos com o mesmo assunto que já estavam em tramitação, mas parados por falta de empenho político. Essa prática parlamentar se chama "apensamento", quando um projeto passa a tramitar dentro de outro já existente. Um grupo de deputados federais que atua na área de saúde quer aprovar o PL 1462, nesta semana, na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), fazendo algumas modificações cruciais no texto que veio do Senado.
A principal delas é tornar a licença compulsória automática, independentemente de ação do Executivo federal. Os parlamentares querem criar essa salvaguarda por duas razões: a primeira é a desconfiança em relação ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A segunda é que isso criaria uma base mais sólida para uma política de Estado em relação a patentes em casos de emergências de saúde pública. Apreciar o projeto na CSSF seria um gesto político para aumentar a pressão pelo envio célere do tema ao plenário da Casa.
"A licença compulsória é uma medida legal"
Especialista em saúde coletiva, o sanitarista Pedro Villardi é uma das principais referências nos debates sobre propriedade intelectual no Congresso e tem participado das discussões recentes com parlamentares brasileiros. Segundo ele, é preciso fazer uma distinção entre o debate inédito na Organização Mundial de Comércio (OMC) sobre a suspensão global de patentes e a discussão sobre licença compulsória no Brasil, ainda que haja convergências. Um país só pode emitir licença compulsória, abrindo o mercado temporariamente a novas produções de, por exemplo, uma vacina patenteada. Já quebrar o monopólio internacional de patente é uma ação possível somente no âmbito da OMC.
"A licença compulsória é uma medida legal, prevista na lei brasileira e que tem respaldo nos tratados internacionais, principalmente o acordo TRIPS [Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, que estabelece regras a todos os países-membros da OMC], que permite ao governo suspender o monopólio de uma patente por algum tempo. Na prática, significa que aquela empresa não tem mais o monopólio de exploração, que o governo pode comprar de outras fontes, que o mercado não vai ser mais um monopólio. Aí essa empresa vai receber royalties cada vez que houver compras que não sejam dela", explica o especialista. "A licença compulsória é uma intervenção estatal na propriedade intelectual muito sutil, porque suspende o privilégio do monopólio por algum tempo", acrescenta.
O Brasil emitiu licença compulsória uma única vez até hoje, em 2007, no escopo das discussões sobre tratamento da aids, para a produção do medicamento antirretroviral Efavirenz, produzido pelo laboratório Merck.
Há uma grande confusão sobre o papel de José Serra (PSDB), que foi ministro da Saúde entre 1998 e 2002 e hoje é senador, na quebra de patentes, mas isso nunca ocorreu na prática. Serra foi um grande articulador internacional sobre esse debate na OMC e também confrontou abertamente a indústria farmacêutica em sua gestão na pasta, mas conseguiu uma negociação com laboratórios que permitiu a queda significativa de preços, não tendo sido necessária a licença compulsória. A diplomacia brasileira, na época em que Serra estava à frente do ministério, teve papel crucial na Declaração de Doha, que deixa clara a prioridade de políticas de saúde pública em detrimento a direitos de patente.
Segundo Villardi, a decisão de 2007 não gerou qualquer tipo de retaliação política ou comercial ao Brasil, uma prova de que o argumento de que a licença compulsória pode provocar retaliação de mercado é improcedente. "O Brasil jamais deixou de comprar outros medicamentos da Merck, a Merck não saiu do mercado brasileiro. Não houve qualquer tipo de retaliação nas esferas multilaterais, não houve desinvestimento. A única consequência – e eu sempre falo isso – da licença compulsória é a garantia do direito à saúde. Não existe nenhuma outra consequência. Nem de cunho político, nem de cunho econômico-comercial", ressalta o sanitarista.
O sanitarista avalia que monopólios causam graves problemas de acesso mundial no campo de medicamentos. "As empresas cobram altos preços porque isso gera escassez. Quando só uma empresa pode vender, ela tem determinada limitação de escala. Estamos vendo esse problema na pandemia de covid-19. Existe uma escassez de vacinas no mundo, e não é uma escassez natural. É uma escassez artificial causada por patentes que permitem a algumas empresas controlarem o mercado", opina Villardi.
"Vamos colocar pressão"
O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), que comandou o Ministério da Saúde entre 2011 e 2014, é um dos articuladores na Câmara da votação do PL 1462. Um projeto de autoria do próprio parlamentar foi anexado a esse texto. Em entrevista à DW Brasil, Padilha disse que o texto da Câmara pretende avançar em relação ao que foi aprovado no Senado em duas frentes: não depender da vontade do governo federal para emitir licença compulsória e agilizar o processo.
"O texto aprovado no Senado obriga o governo federal, em 30 dias, a publicar uma lista de quais itens serão objeto de licença compulsória. A empresa que produz a vacina tem prazo para mostrar ao governo quais as condições dela para vender. Se o governo considerar que é suficiente, ele não decreta licença compulsória e compra dela. A diferença do projeto que está na Câmara é não depender do governo e acelerar o rito", justifica.
Um processo de licença compulsória pode durar mais de seis meses, afirma Padilha, e a pandemia exige urgência. "Lógico que a votação do Senado foi um avanço, porque botou o tema na pauta e coincidiu com a posição dos EUA", reconhece o deputado.
Se a licença compulsória se tornar uma política de Estado e permanente em casos de emergência de saúde pública, diz Padilha, isso obrigaria os fornecedores de IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) a cumprirem cronogramas com o Brasil para a fabricação de vacinas. Além disso, afirma, abriria-se o mercado para mais empresas produzirem tecnologia. Padilha vê chances de a frente parlamentar do agronegócio apoiar o projeto, pois há muitas empresas do setor veterinário interessadas em desenvolver a tecnologia para vacinas.
Para o deputado, o clima no Congresso mudou porque a classe política percebeu com clareza a escassez de vacinas e a mudança do cenário internacional com a postura de Biden. Padilha ressalta que o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), apoiou, no ano passado, o envio do projeto de lei ao plenário, como líder de partido. "O clima está muito diferente hoje na Câmara, com vários partidos sinalizando que são favoráveis. Vamos colocar pressão e tentar votar na CSSF."
"A vida está acima dos lucros"
Autor do projeto original do Senado, que depois foi modificado com um amplo acordo, o senador Paulo Paim (PT-RS), por sua vez, acredita que haverá maior resistência na Câmara.
"A Câmara realizou uma sessão de debates temáticos com especialistas e a maioria se posicionou favorável a quebra de patentes. Muitos deputados são favoráveis à aprovação da matéria. Porém, será uma discussão bastante acirrada, porque a base do governo é muito forte na Casa. Os deputados precisam se sensibilizar. A vida está acima dos lucros. Estamos tratando de pessoas, existência, sonhos, presente e futuro de gerações inteiras", afirmou, em entrevista à DW Brasil, por e-mail.
Paim foi um dos parlamentares que introduziu o tema no Congresso, lembrando-se do histórico brasileiro. "Sempre estiveram presentes na minha memória as duas oportunidades em que o Brasil tratou do assunto no âmbito internacional. A primeira vez com o então ministro da Saúde, José Serra, que ameaçou declarar a licença compulsória do medicamento Nelfinavir, em 2001. Posteriormente, com o ministro [José Gomes] Temporão para o medicamento Efavirenz, em 2007", diz.
A despeito das resistências, o senador concorda que a posição dos Estados Unidos e a lentidão do processo de vacinação no Brasil podem servir de pressão para o Congresso brasileiro concordar com as licenças compulsórias.
"A desigualdade do acesso à vacina no mundo é uma coisa vergonhosa e brutal. Temos países já vacinando população abaixo de 30 anos, enquanto outros ainda não conseguiram vacinar um profissional da saúde sequer. Manter o argumento de que as patentes precisam ser preservadas para proteger os investimentos é um argumento muito fraco", pontua Villardi, ressaltando que a cada 5 dólares investidos na tecnologia de vacinas, 4 dólares vieram do poder público ou de filantropia.