Brasilidade e classicismo
3 de dezembro de 2011André Mehmari é possivelmente o mais bem-sucedido compositor erudito brasileiro da geração de 30 anos. Sua atividade como pianista, tanto do repertório clássico como popular-jazzístico, lhe confere uma projeção fora do comum para um criador contemporâneo. E marca fortemente sua produção, que combina idiomas modernos com técnicas consagradas de composição e melodias e harmonias assimiláveis.
Graças a seu domínio comprovado da escrita orquestral, em 2010 o paulista foi convidado pela Deutsche Welle para o Orchestercampus, uma seção do Beethovenfest de Bonn. Para tal, escreveu a peça Cidade do Sol, especialmente para a Sinfônica Heliópolis, um projeto de inclusão social e formação de músicos de orquestra nascido na favela paulista de mesmo nome.
A colaboração foi tão bem sucedida que em 2011 Mehmari recebeu uma nova encomenda da Deutsche Welle. Como parte da turnê do conjunto de câmara Polyphonia Ensemble Berlin no Brasil, ele foi encarregado de preparar uma peça para três sopros (oboé, clarinete e fagote), três cordas (violino, viola e violoncelo), reservando-se o papel de solista ao piano. A estreia de Variações Villa-Lobos ocorre neste sábado (03/12), no Teatro Castro Alves de Salvador, seguida de um concerto na Sala Jardel Filho, em São Paulo, no domingo (04/12).
Leia abaixo a entrevista de André Mehmari à Deutsche Welle, concedida na véspera da apresentação em Salvador.
Deutsche Welle: Cidade do Sol foi muito bem recebida no Beethovenfest 2010 e nas apresentações subsequentes na Europa. O que ocorreu em sua vida profissional, deste essa experiência até esta nova encomenda?
André Mehmari: Bem, depois a Sinfônica Heliópolis tocou a Cidade do Sol na Sala São Paulo numa versão coral, com um coro infantil da favela de Heliópolis. E depois ainda fiz outro concerto com a Sinfônica, como solista, num programa basicamente todo com obras minhas. Ele foi regido pelo maestro Isaac Karabitchevsky, que assumiu a direção artística da orquestra após a saída do Roberto Tibiriçá.
Meu trabalho tem o elemento da improvisação e deixei cadenzas abertas, para improvisar na hora. Isso estimulou os músicos, que nunca tinham visto um solista inventar coisas na hora. Eles ficaram entusiasmados. Esse foi um outro desdobramento. E agora eles vão tocar, nas celebrações de fim de ano, uma Fantasia Coral Natalina, que escrevi inicialmente para a Sinfônica do Amazonas.
Em que termos veio a atual encomenda para a turnê do Polyphonia Ensemble?
Bem, eu acho que o Gero Schliess da Deutsche Welle deve ter ficado satisfeito com a minha composição, e fez essa nova encomenda. Ela apareceu até um pouco em cima da hora, uns dois meses e meio atrás – o que é bem pouco tempo para uma peça de 15 minutos, tendo em vista que eu estava com a agenda totalmente lotada, até agora – mas foi muito bem-vinda. O Gero disse, simplesmente: “André, nós vamos ter esses eventos na Bahia e São Paulo, e eu gostaria muito de ter você escrevendo e tocando. A instrumentação é esta: trio de cordas, trio de palhetas, e você tocando ao piano.
Eu não tinha nada pronto para essa formação. E num momento de lucidez, me lembrei dessa obra que compus em 2006 para o grupo Opus Brasil Ensemble. Era a Variações Villa-Lobos para trio de palhetas e piano. Ela agora recebeu essa versão expandida, que acho até mais bonita do que a original. Foi uma maneira que encontrei de conseguir dar conta do recado, desse trabalho de altíssima responsabilidade, para músicos desse quilate. E acho que deu tudo certo, deu tempo de repensar a composição para este grupo e para este evento.
Seu ponto de partida foram temas do Prelúdio das Bachianas Brasileiras nº 7, de Heitor Villa-Lobos. Mas, em certos momentos, tem-se a impressão de que você procede por livre associação, como quando um fragmento do baixo original desencadeia a citação de um trecho da Sagração da Primavera de Stravinsky. Beethoven fez algo semelhante nas Variações Diabelli, ao citar um trecho da ópera Don Giovanni de Mozart. Fale um pouco dessa técnica.
Acho que Beethoven é o pai da variação moderna. Ele foi o primeiro a romper com o estilo das variações clássicas – que eram muito mais estritas, restritas – e introduziu um universo de fantasia que não existia antes. Nas Diabelli, tem estações barrocas, handelianas, tem piadas, um senso de humor incrível, tem coisas gravíssimas, ele vai a extremos de afeto absolutamente marcados: ele dá essa aula de composição. E, nesse sentido, as Variações Diabelli – e as Variações em dó menor, que são mais estritas, mas que são geniais, e que eu sempre adorei tocar – são uma referência. As Diabelli têm uma narrativa, que foi o que eu procurei na minha obra também: a ordem das variações é inerente à composição, faz parte da estrutura.
A Sagração da Primavera mudou a vida de Villa-Lobos, ele fala da emoção de ouvir essa obra. Então, nada mais justo do que colocar aquela ave selvagem que Stravinsky cita [canta]. E é villa-lobiano: se você pega o Trio de palhetas, dele, é a Sagração total. É quando Villa-Lobos rompe com o Impressionismo francês e vai para uma técnica mais seca de escrita harmônica e rítmica.
Tem-se a impressão de que no seu septeto você explode o conceito de “bachianas”, até chegar àquela espécie de pan-barroco do Neoclassicismo musical moderno – como em Francis Poulenc ou no próprio Stravinsky. Há uso de técnicas contrapontísticas que Johann Sebastian Bach dominava – inversão, aumentação e diminuição. Em determinado momento, até uma alusão à Oferenda Musical. Ou é acaso?
Tem, tem. Tem também o Barroco italiano, daquele tipo de concerto grosso, com Corelli, tem o francês de Rameau. Em determinado momento, aparece Rachmaninoff, Prokofiev. Mas não são citações textuais. Acho que o mérito da composição é amarrar todas essas referências. Fora o Stravinsky, são só alusões. A obra transita por essas músicas todas, mas é sempre o tema do Villa-Lobos: todos os elementos que usei estão justificados no tema. Novamente: são técnicas beethovenianas de variação. E acho que se eu sentasse para escrever mais variações, teria trabalho: acho que realmente esgotei as possibilidades. Ali são 20 minutos de variações – fora os temas.
E como é sua sensação após dois dias de ensaios com o Polyphonia Ensemble?
Hoje acho que chegamos a um resultado bem bom, bem bonito. Fiquei contente com esse ensaio da noite: conseguimos tocar a obra do início ao fim, sem pausas, pela primeira vez. Então a gente conseguiu compreender a grande linha dela, a historinha toda. E acho que finalmente os músicos também “vestiram a camisa”, eles estão tocando com prazer, sinto isso. Hoje estou com uma sensação boa de missão cumprida como compositor. Acho que a peça está bonita e representa bem a brasilidade. E, na hora, minha missão é como pianista.
Entrevista: Augusto Valente
Revisão: Soraia Vilela