De supersaudável às portas da morte com o coronavírus
22 de novembro de 2020"No fim de março eu tive uma leve dor de cabeça. Fui ao médico, mas ele meio que minimizou os sintomas, não levou tão a sério." O diagnóstico foi um "resfriado", porque Peter Schmidtgen espirrava e tossia. No entanto, os sintomas eram persistentes e simplesmente não desapareciam.
Depois de tomar os antibióticos prescritos, que não ajudaram, ele voltou ao seu médico, que desta vez reagiu de maneira diferente. "Ele chamou imediatamente uma ambulância, que me levou para o hospital mais próximo." Lá, ele foi examinado, e o teste acusou contágio com o novo coronavírus. "Fiquei dois dias internado no hospital e piorava cada vez mais. Aí os médicos me colocaram em coma artificial", conta. Isso foi em 4 de abril.
Sem memória alguma
Schmidtgen ficou em coma por três semanas, teve falha pulmonar, foi submetido a uma traqueotomia e recebeu respiração artificial. Mas ele não consegue se lembrar de nada disso, é apenas uma grande lacuna, como se o tempo tivesse sido apagado.
"Ele sofre do que é conhecido como amnésia retrógrada", explica a médica responsável pelo atendimento, Silvia Lindenberg. Ela cuida do paciente desde junho, quando foi transferido para o Centro de Reabilitação Precoce e Ventilação em Nümbrecht, no estado da Renânia do Norte-Vestfália.
Esse tipo de sequela afeta muitos pacientes que tiveram coronavírus. "Ele não se lembra de quase nada, por exemplo como chegou ao hospital e o que aconteceu depois. Ficaram, no máximo, apenas vagas lembranças", diz a neurologista.
Schmidtgen tampouco se lembra dos sintomas e de como se sentiu durante a primeira fase da doença. Todas essas memórias simplesmente se apagaram. Em algum momento, sua esposa e os médicos lhe contaram o que realmente aconteceu, "mas era como se eles não estivessem falando de mim, e sim de alguém completamente diferente".
Um pesadelo
O senhor de 66 anos apresentou o quadro clínico de um paciente extremamente grave de covid-19. "Ele teve uma trombose venosa profunda nas pernas, uma embolia pulmonar dupla e vários infartos cerebrais que ainda estão sangrando", conta Lindenberg, que já tratou de vários casos graves e quase sem esperança em seu departamento de reabilitação. Mas o de Schmidtgen é um dos piores que já viu até agora.
"Seus pulmões estavam em péssimas condições, tinham quase desistido completamente de funcionar, porque não conseguiam mais absorver oxigênio." Por fim o paciente foi conectado a um pulmão artificial.
"Ele teve vários derrames, ficou paralisado do lado esquerdo e mal conseguia mover o braço", descreve Lindenberg. Ela tem muitos anos de experiência com pacientes de reabilitação, incluindo convalescentes de covid-19, que sofriam graves sequelas ou ainda sofrem.
"Os colegas de outros hospitais para que tivemos que transferi-lo algumas vezes me disseram que fcavam simplesmente boquiabertos diante das radiografias dos pulmões de Schmidtgen", conta Lindenberg. "Em algum momento, o tecido pulmonar se transformou em puro tecido cicatricial. Mas ninguém consegue respirar com isso."
De volta à vida
Quando os médicos finalmente tiraram Schmidtgen do coma, seu rosto estava pálido e encovado. "Quando me vi no espelho pela primeira vez, fiquei apavorado. Na verdade, sempre fui magro, mas agora estou esquelético." Dos 77 quilos de peso corporal anterior, restam apenas 60. De início, ele só conseguia ficar deitado, nem pensar em fazer qualquer outra coisa.
Vários terapeutas cuidam do sexagenário e tentam colocá-lo de pé. É uma tarefa árdua, mas sua atitude positiva e seu humor – que ele não perdeu – o ajudam. "Os terapeutas vêm três ou quatro vezes por dia. É um pouco como açúcar e chicote, porque sou preguiçoso por natureza. Mas não há nada a fazer, eu quero voltar à minha vida."
Com a ajuda de médicos, terapeutas e enfermeiros, ele está fazendo pequenos progressos. Muito gradativamente, é capaz de fazer algumas coisas que para a maioria das pessoas é óbvia. "Por exemplo, hoje eu consigo me lavar sozinho. Há algumas semanas, não era possível. Eu era lavado na cama, e isso era terrível."
Agora ele consegue percorrer distâncias curtas. "No começo, eu pensava: puxa, o que podemos fazer com ele? Até onde podemos levá-lo? Mas ele superou minhas previsões iniciais", lembra Lindenberg. "Quando penso na condição em que estava há um mês e meio, não conseguia sair da cama e ir até a varanda. E são só uns quatro passos." A médica acompanha seu paciente intensamente há meses e está feliz com cada pequeno progresso.
"Comigo não!"
Schmidtgen não tinha doenças prévias. Apesar da idade, não pertencia ao grupo de risco, pois não tinha excesso de peso, pressão alta e não era sedentário. "Sempre fui saudável e fisicamente ativo: eu costumava andar muito de bicicleta e esquiar nas férias de inverno. Eram os outros que sempre adoeciam, mas eu não. Sempre pensei: isso não pode acontecer comigo, pois nunca tive nada a ver com doenças."
Por que a doença o atingiu é uma questão intrigante para Schmidtgen. Ele sempre se viu como uma pessoa absolutamente saudável. "Meus genes devem ser realmente muito bons: minha mãe viveu até os 99 anos e esteve em forma por toda a vida."
Em 2020, ele e a esposa queriam realizar um sonho há muito acalentado: seis semanas na Austrália por conta própria. Os voos, acomodações e o carro foram reservados, mas então a Austrália impôs uma proibição de entrada devido ao coronavírus, e os voos foram cancelados. Hoje, Schmidtgen está feliz por eles não terem podido empreender a viagem. "O coronavírus poderia ter me apanhado em algum lugar remoto da Austrália sem a possibilidade de atendimento médico."
Enquanto era saudável, ele sempre pensou que era imune a tudo. "Mas agora descobri que não é assim. E quando penso em todos esses negacionistas que não levam o coronavírus a sério, quando penso em quem acredita que algo assim não pode acontecer com eles... Eu sou um bom exemplo – e graças a Deus, ainda vivo – de que isso pode acontecer com qualquer pessoa." Acima de tudo, ele está decepcionado por tantos não encararem o coronavírus com a devida seriedade.
Silvia Lindenberg compartilha essa opinião. Há muitos meses ela vem lidando com as consequências da covid-19. Os negacionistas do coronavírus não lhe dão medo, mas sim raiva. "Certamente seria bom se pudessem ver como é a situação numa unidade de terapia intensiva para infectados com o novo coronavírus. Acho muito importante que as pessoas continuem esbarrando com a realidade", comenta a médica.
Para ela, nunca é demais falar do assunto, mesmo que muitos fiquem irritados: "Não devemos parar de acentuar, repetidamente: o novo coronavírus é uma doença grave. Não pode simplesmente pegar leve com ela."
Otimismo inquebrantável
Peter Schmidtgen é um batalhador e não pretende desistir. Apesar de tudo por que passou até agora, manteve uma atitude admiravelmente positiva perante a vida. "Não posso mais fazer o que fazia antes. A rigor, isso deveria me angustiar, mas não sou assim. Eu penso: 'Vou conseguir, vai tudo voltar."
Os amigos e parentes que o contatam regularmente são muito importantes para ele, lhe dão respaldo. E ele está orgulhoso da esposa que tem a seu lado: ela também contraiu o coronavírus, ficou no hospital por duas semanas, mas teve sintomas moderados.
Eles se casaram em 2003 e juntos exploraram muitos países, como Botsuana, Argentina e Chile. "Nós viajamos muito juntos, mas também individualmente, mochila nas costas e pé no mundo. Eu pedalei de costa a costa dos EUA, do Oceano Pacífico ao Atlântico."
Ele também esteve no Monte Everest. "Foi quando eu senti pela primeira vez o que é ter falta de ar. Nessa altitude, o oxigênio é muito escasso. Você respira rápido, mas esse gás vital simplesmente não chega." Há dois anos, ele e a esposa estavam na Antártida. "Foi uma grande experiência", lembra, e hoje se alimenta dessas vivências. "Se você pensa positivo, em alguma hora tudo volta a dar certo, na vida."