Entre Rússia e UE, ucranianos enfrentam odisseia desumana
13 de outubro de 2022Para muitos ucranianos que estão na Rússia, fugir para a Europa é uma luta pela sobrevivência, numa viagem massacrante que pode exigir semanas de preparativos.
Depois de ser forçada a esperar por seis dia sob tempo inclemente no posto de controle de Kunichina Gora, no lado russo da fronteira com a Estônia, Annika (nome fictício por razões de segurança) acredita que as autoridades russas perderam completamente a humanidade: "Eu chorava, soluçava, quando vi as criancinhas, vi como a coisa toda era cruel e como todo mundo se transformou em feras nestas condições."
Em 2014, quando as primeiras explosões em Donetsk e Lugansk anunciaram a chegada na Ucrânia daquilo que o presidente Vladimir Putin denominava "o mundo russo", Annika, de 40 anos, trocou seu lugarejo perto de Mariupol pela relativa segurança de Kiev.
Porém quando chegaram à capital as notícias da invasão em grande escala iniciada em 24 de fevereiro, ela quis se reunir a seus pais idosos, que haviam permanecido nos territórios ocupados de Donetsk. Tendo perdido o contato com eles por vários meses, com a ajuda de voluntários ela conseguiu encontrá-los em setembro em Moscou – uma rota de escape da guerra mais segura para quem vinha das áreas sob ocupação inimiga.
Após dez dias na Rússia, contudo, ao chegar sozinha no posto de controle de Shumilkino, havia pelo menos 2 mil refugiados esperando para atravessar a fronteira, além de uma longa fila de carros. Annika dirigiu-se a Kunichina Gora em 29 de setembro, onde esperou na fila por seis dias até finalmente pôr pé em solo europeu. "Nós nem precisamos de inimigos, nós temos o 'mundo russo'", comenta com amargor.
"Se tratam assim os deslocados, o que é que fazem com os prisioneiros?"
Annika conta que os agentes de fronteira russos intencionalmente deixaram os ucranianos esperando, enquanto chamavam os viajantes de outras nacionalidades para passarem na frente. Ela crê que houve uma ordem para torturar seus compatriotas ainda mais, como parte da guerra da Rússia contra a Ucrânia.
A primeira noite ela passou no posto a céu aberto, até que voluntários lhe providenciaram acomodações num vilarejo próximo. A cada oito horas, ela tinha que retornar a seu lugar na fila, onde entre 600 e 800 homens, a maioria refugiados ucranianos, esperavam ansiosamente, sem água nem comida. As mulheres e crianças foram admitidas do lado de dentro.
O pior veio no quarto dia, quando caiu uma chuva torrencial sobre a multidão sentada na beira da estrada. "Os ramos se partiam e se curvavam, parece que fazia 20 graus abaixo de zero do lado de fora. Procuramos abrigo, porque as nossas mãos ficaram logo congeladas. Toda a minha roupa estava molhada, eu tirei um copo d'água de cada bota."
De acordo com o serviço meteorológico, entre 2 e 4 de outubro, os dias que ela descreve como os piores, foram registrados de 5 ºC a 11 ºC na cidade mais próxima do posto de Kunichina Gora, e choveu constantemente durante dois dias.
De acordo com Annika, em 24 horas apenas cinco ucranianos tiveram permissão para atravessar. Mariupoli Sobrad, uma rede de voluntários que providencia ajuda humanitária para ucranianos, confirmou que, na última semana de setembro, centenas de refugiados foram impedidos de deixar a Rússia em pelo menos três passagens de fronteira na Estônia.
"As autoridades de fronteira russas passaram a endurecer muito os controles. Eles querem provavelmente pegar homens que estejam tentando escapar da Rússia e da mobilização", comenta Aleksandra Averjanova, da direção da rede humanitária. Um voluntário que estivera em Shumilkino e Kunichina Gora comentou na plataforma Telegram: "Parece que estão querendo nos intimidar."
Espalharam-se boatos de que duas mulheres haviam morrido enquanto esperavam para atravessar. Averjanova confirma que um ucraniano cortou o pescoço com um caco de vidro na sala de interrogatório do posto de Ivangorod. Annika tirou a foto de um corpo coberto com lençol branco ao lado de uma ambulância.
Quando finalmente conseguiu entrar na Estônia e recebeu uma xícara de chá quente dos agentes de fronteira, a refugiada caiu em prantos. Ela se pergunta como uma vivência dessas é possível no século 21: "Se é assim que os deslocados são tratados, o que é que eles fazem com os prisioneiros, com os soldados?"
Estônia dificulta entrada de ucranianos da UE
Desde 24 de fevereiro, cerca de 109 mil cidadãos ucranianos ingressaram na Estônia. Entretanto as autoridades locais confirmam que pelo menos 1.091 outros foram impedidos de entrar na União Europeia através do país. Só em setembro, foram 306, três vezes mais do que nos primeiros três meses da invasão russa.
"Uma das razões para não permitir que alguém entre no país pode ser o risco para a ordem pública ou a segurança nacional", explica Egert Belitsev, do Departamento de Controle de Fronteiras estoniano. "Entre os que tiveram a entrada negada há, por exemplo, quem viveu e trabalhou na Rússia por muito tempo e não estava vindo para a Estônia como refugiado, mas como turista ou para visitar parentes e amigos."
Embora não haja base legal para tal, as autoridades estonianas aparentemente visam homens das áreas ocupadas da Ucrânia que, a seu ver, passaram tempo demais na Rússia. A DW conversou com um ucraniano que recebeu justamente essa justificativa ao ser rejeitado na fronteira de Narva.
O refugiado, que pediu anonimato, deixou a Ucrânia após a invasão e, em vez de viajar pelo front da guerra, adotou a opção mais fácil, atravessando a Rússia por duas semanas até chegar à fronteira estoniana. Outro refugiado de guerra foi impedido de atravessar a fronteira da Letônia pelas mesmas razões.
"Não estamos deixando todo mundo entrar que simplesmente diga que é ucraniano", afirma o embaixador estoniano na Ucrânia, Kaimo Kuusk. "Tempo demais na Rússia não são duas semanas: estamos falando de dez anos." Essa atitude não se baseia na prática, contudo: a abordagem severa da Estônia não leva em consideração os desafios enfrentados pelos que fogem da guerra.
Segundo voluntários, os refugiados por vezes precisam de semanas para organizar sua viagem e se recuperar da fuga por áreas devastadas pela guerra na Ucrânia ocupada. Uma travessia bem-sucedida é para muitos a entrada numa realidade totalmente diferente. "A gente respira fundo e se dá conta que saiu do inferno para a civilização", resume Annika.