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Esqueçam a Alemanha perfeita!

4 de março de 2020

Fonte de mel e euros: assim a Alemanha é vista por muitos. Uma imagem não só pesada de carregar: ela é também falsa. É possível reconhecer os defeitos do próprio país e continuar amando-o. O Brasil ensina isso.

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Prateleiras vazias de supermercado
Prateleiras vazias em tempos de coronavírusFoto: imago images/Blaulicht News/S. Peters

Caros brasileiros,

Vocês devem conhecer bem esse sentimento: não importa para onde se olhe, só tem notícia ruim; querer sair da sua cidade ou até do país, mas não saber para onde correr. Confesso que atualmente me sinto um pouco assim.

Percebi que faço parte de uma Alemanha cheia de defeitos e problemas, e que vive um clima inquietante. Apesar de, à primeira vista, tudo parecer funcionar normalmente, os sinais de mudança são inegáveis.

Faz poucos dias, fiz compras num supermercado com prateleiras vazias. Sei que isso faz parte do dia a dia na Venezuela, mas aqui? Lembrei-me até dos tempos da hiperinflação no Brasil quando as pessoas abarrotavam os carrinhos de compra, por precaução.

Aqui na Alemanha, agora é o coronavírus que causa essa correria. Com medo de ter que ficar em quarentena, uma parte da população resolveu estocar alimentos e artigos de higiene em casa.

O vírus já mudou o dia a dia. Eventos, feiras e festas estão sendo cancelados; algumas escolas suspenderam as aulas; viagens a trabalho foram cortadas por muitas empresas, e no transporte público o empurra-empurra provoca um péssimo astral.

Colunista Astrid Prange
Colunista Astrid Prange

Mas não é somente o coronavírus, não. É a mudança do clima político em geral. O crescimento de uma direita violenta fez aumentar o número de atentados a sinagogas e mesquitas. Outro dia, pela primeira vez em 20 anos, o meu professor de tênis marroquino me disse que não estava "tudo bem".

Contou-me em voz baixa que a esposa dele tem medo de ser agredida quando vai para mesquita. Olhei para ele e me senti envergonhada. Faz 20 anos que ele dá aula, e nunca faltou a um treino ou campeonato. Fala perfeitamente francês, alemão e árabe. E agora sente medo.

Infelizmente esse medo é real. Tão real, que nesta quarta-feira (04/03) a chanceler federal Angela Merkel vai participar da cerimônia de luto para as vítimas do atentado na cidade de Hanau, duas semanas atrás: em 19 de fevereiro, um homem de 43 anos entrou num bar de narguilé e matou nove pessoas.

Nessa cerimônia de suma importância, a Alemanha encara a luta contra esse clima inquietante. É a luta da sociedade para que o país continue aberto, democrata, unido, humano, sólido e economicamente forte.

Assim a Alemanha é vista em muitos países, inclusive no Brasil. E é assim que a grande maioria dos alemães vê, com um certo orgulho, o próprio pais. Eu também aposto e ainda acredito nessa imagem.

Mas infelizmente não dá mais para negar que também exista outra realidade. A Alemanha mudou. Um dos índices é o aumento dos crimes motivados por ódio. Segundo o Ministério do Interior, o número dos delitos subiu de 5.376 em 2001 para 8.113 em 2018.

Esses números se fazem sentir no dia a dia. É o policial xingado, o prefeito ameaçado, o politico insultado, o bombeiro barrado nos primeiros socorros, voluntários e ativistas perseguidos, judeus atacados e tendo a quipá rasgada, mulheres muçulmanas com o véu arrancado na rua e humilhadas.

Peço a vocês para não ignorarem essa face. A história de um país-fonte de mel, jorrando leite e euros, é um conto de fadas. Por favor: esqueçam a imagem de uma Alemanha perfeita! Ela está simplesmente errada.

E mais: não sou, nem quero ser cidadã de um país perfeito. É um peso grande demais, pois as expectativas nunca são alcançadas. Cansei de me desculpar e ainda mais me justificar por trens atrasados, escolas malcuidadas, pobreza inesperada e vergonhosos nazistas.

Prefiro ser considerada cidadã de um país normal. A Alemanha não é uma ilha num mar de problemas: o coronavírus prova isso mais uma vez. É possível viver num país cheio de defeitos e, mesmo assim, amá-lo. Aprendi isso no Brasil.

Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário TAZ de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e em astridprange.de.

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