Festival
29 de novembro de 2006Esculpindo o tempo
A seleção deste ano faz com que documentários de teor autobiográfico saltem aos olhos em praticamente todas as seções do festival. Começando por Wide Awake, último longa de Alan Berliner (homenageado em Amsterdã este ano), em que o diretor passa 79 minutos debatendo as causas de sua própria insônia crônica, até Santiago, do brasileiro João Moreira Salles, uma discussão sobre a memória através da figura do mordomo que trabalhou durante décadas para a família do diretor.
Narrado em primeira pessoa, o longa em preto-e-branco traz à tela a história do argentino de origem italiana Santiago, que em suas horas vagas dedicava-se a reescrever a história da aristocracia universal, tendo deixado após sua morte um legado de mais de 30 mil páginas.
Mais do que uma narração curiosa sobre a história de seu protagonista, o filme de Moreira Salles é uma reflexão sobre a construção e o resgate da memória, "esculpindo o tempo" através dos depoimentos do mordomo que passou sua vida "embalsamando o passado".
Feridas à mostra
Outros exemplos de referência à própria história dos diretores não faltam em Amsterdã: o curta alemão de sete minutos Cigaretta mon amour, de Rosa Hannah Ziegler, é um portrait da relação do pai da cineasta com o cigarro. No belo Mein Vater der Türke (Meu pai, o turco), o diretor alemão Marcus Vetter, que assina a direção ao lado de Ariane Riecker, vai pela primeira vez ao encontro de seu pai em uma pequena aldeia da Turquia.
Em The End of the Neubacher Project, o austríaco Marcus J. Carney revela como as feridas da Segunda Guerra ainda estão abertas dentro de sua própria família, expondo no documentário o anti-semitismo persistente de um tio e o sofrimento causado pela falta de elaboração do passado na biografia da própria mãe.
Busca bem-humorada
Também o israelense Shahar Cohen relembra a Segunda Guerra no bem humorado Souvenirs (co-dirigido por Halil Efrat), forte candidato ao prêmio de melhor documentário no festival. O filme acompanha a trajetória do pai do diretor, um veterano da Brigada Judaica, criada em 1944 como parte das forças britânicas e que depois de passar pela Itália ficou estacionada durante o pós-guerra por vários meses na Holanda.
O longa, que move incessantemente o espectador das lágrimas às risadas, mostra a viagem em busca dos pequenos objetos que o então soldado judeu havia deixado com as namoradas que teve durante os meses passados na Holanda. Acima de tudo, o filme serve para revelar a relação entre o cineasta (filho) e o protagonista (pai) e desmascarar os mitos criados por um em relação ao outro.
Reflexão sobre o fazer cinematográfico
A tendência subjetiva dos diretores observada no festival não se reduz apenas à constante tematização da própria história no documentário, mas também à presença física do cineasta, que "atua" como protagonista ou pelo menos é visto ou ouvido em vários momentos, interagindo explicitamente com a equipe de filmagem, pedindo cortes, repetições, variações. E dicutindo, desta forma, sobre o fazer cinematográfico.
Embora escape ao filão autobiográfico, uma das reflexões mais interessantes sobre o cinema pode ser vista no festival no belíssimo Pasolini prossimo nostro, de Giuseppe Bertolucci. No filme, o diretor (que é o irmão mais novo de Bernardo Bertolucci) usa imagens em preto-e-branco de uma entrevista feita pelo jornalista Gideon Bachmann com o próprio Pasolini em junho de 1975. Gravada em 35 mm nos sets de filmagem de Saló, a conversa aconteceu seis meses antes de o diretor ser brutalmente assassinado.
Contestar a mediocridade
Bertolucci intercala fotos de still de Saló com a lucidez dos depoimentos de Pasolini apontando a "ideologia míope" na sociedade italina e referindo-se às cenas de sadismo presentes em seu último filme como "metáfora do que o poder faz com o corpo humano, comercializando-o e reduzindo-o a uma simples coisa".
Enquanto se vê na tela as cenas de Saló congeladas nas fotos em preto-e-branco, Pasolini desmascara em viva voz os rituais do poder, explica por que a linguagem do cinema é libertária e comenta como a França "não quis aprender" com suas colônias. Embora afirme que "a esperança é uma coisa horrível, que não se deve ter", o cineasta insiste no papel do artista como "contestador da mediocridade". Contestadores como ele, porém, o cinema talvez ainda tenha que esperar muito para ver de novo.