No que devemos prestar atenção em um político ou política que se candidata a um dos cargos mais importantes do mundo? Acho que o básico é saber se a pessoa tem ideias e propostas com as quais você concorda; se é honesta, experiente e capaz de lidar com uma mega responsabilidade e com os desafios que vai encontrar. Mas, se a candidata for mulher, talvez avaliem também se ela é "mãe" ou não. O que uma coisa tem a ver com a outra? Nada. Mas está acontecendo com Kamala Harris, candidata democrata à presidência dos Estados Unidos.
Confesso que me sinto até mal de ter que dar explicações sobre a vida privada de Kamala nesse texto (já que isso nem deveria ser mencionado). Talvez meu desconforto seja maior por morar na Alemanha há bastante tempo, e aqui a vida privada dos políticos, em uma espécie de pacto da sociedade, não é superexposta – nem em tabloides. Sei – porque pesquisei, já que isso nunca foi tratado como uma grande notícia – que o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, é casado e não tem filhos. Assim como a sua antecessora Angela Merkel também não tinha. Eles já foram criticados abertamente por isso? Não que eu saiba, já que as críticas devem ter sido feitas em voz baixa.
Mas nos Estados Unidos tudo é um show, e isso nos mostra como a sociedade ainda é conservadora. Então, vamos lá. Kamala é casada com o advogado Doug Emhoff desde 2014 e é madrasta de dois enteados adultos, Ella e Cole, a quem é super apegada. Eles fazem campanha ativamente para Kamala, e Ella disse, em uma convenção do Partido Democrata em 2020 que Kamala era a "melhor madrasta do mundo".
Bacana. Mas repito a pergunta: o que isso interessa? Pelo jeito, muito, já que Kamala é questionada constantemente por "não ter filhos biológicos".
Ser mãe não indica competência
O último escândalo aconteceu quando a governadora republicana Sarah Huckabee Sanders, do Arkansas, disse, mês passado, que a candidata do Partido Democrata "não era humilde por não ter filhos biológicos". Sim, esse absurdo foi dito em 2024. Hoje, ainda bem, sabemos que existem famílias onde a paternidade aconteceu via adoção, família com duas mães, dois pais, por aí vai. A expressão "filho biológico" nem devia ser mais usada.
Kamala teve que dar uma aula básica sobre novas famílias semana passada em um podcast. "Acho que ela [a senadora republicana] não entende que há muitas mulheres aqui que não desejam ser humildes. Além disso, muitas mulheres aqui têm muito amor na vida, família e filhos. [...] Temos nossa família de sangue e nossa família de amor. Tenho ambos e considero isso uma verdadeira benção", disse. Ela ainda afirmou que tinha uma família moderna, que era amiga da ex-mulher do marido e que "acho que, cada vez mais, todos nós entendemos que não estamos nos anos 50".
Concordo totalmente, mas só ela ter que dar esse tipo de explicação mostra que parte da humanidade ainda está parada sim nos anos 50.
O caso Kamala deveria deixar claro, de uma vez por todas, que uma mulher ser mãe não faz dela mais ou menos competente para um trabalho, faz apenas com que ela seja… mãe. Mas claro, mulheres são julgadas em relação à maternidade independente de suas escolhas. Se Kamala fosse mãe, talvez fosse acusada de "não ligar para os filhos", "trabalhar demais", "não ser boa mãe" ou de "não ter tempo o suficiente para se dedicar ao trabalho". Essas acusações, claro, nunca são feitas contra pais.
Mulheres sem filhos com gatos
Essa não é a primeira vez (e não será a última) que o fato de Kamala não ter filhos "biológicos" apareceu na campanha. Recentemente, uma fala absurda do candidato a vice-presidente pelo Partido Republicano, J.D. Vance, voltou a viralizar. Em 2021, o republicano disse à Fox News que os EUA eram um país que sofria nas mãos de "um bando de mulheres amarguradas que têm gatos em vez de filhos".
Esse discurso de ódio foi feito contra Kamala, mas atingiu boa parte das mulheres do país. Sim, nós (também sou uma delas), as "mulheres sem filhos com gatos", somos muitas. Na época, celebridades, como Jennifer Aniston (que também não tem filhos), se manifestaram revoltadas. Em agosto, a mega pop star Taylor Swift, que tem o poder de influenciar milhares de votos, declarou seu apoio a Kamala nas redes sociais e assinou como "childless women with cats" (mulher sem filhos e com gato). Várias mulheres passaram a fazer o mesmo.
Legal. Mas o mundo precisa entender que uma mulher ter vários gatos, vários filhos, nenhum gato e nenhum filho não significa nada em relação à sua capacidade profissional. E é claro, óbvio, mulheres sem filhos com gatos não são necessariamente infelizes. Até quando vamos ter que repetir o óbvio?
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.