O que está por trás da moda das "esposas tradicionais"
1 de setembro de 2024Nara Smith usa um vestido de noite vermelho com lantejoulas enquanto prepara cuidadosamente um jantar com kimchi (uma comida tradicional coreana) para os três filhos e o marido. O cabelo da jovem de 23 anos está perfeitamente penteado e a maquiagem, impecável: é assim que ela sempre aparece em seus vídeos no TikTok ou no Instagram.
Roupas igualmente chiques são usadas quando Smith cria versões caseiras de tudo: de refrigerante a creme de avelã e chocolate. A influenciadora americana faz parte da crescente tendência no TikTok tradwife, abreviação em inglês para "esposa tradicional". Perfis e a hashtag tradwife promovem os papéis tradicionais de gênero, com conteúdo sobre culinária e cuidados com os filhos. Nara Smith já soma mais de 9 milhões de seguidores no TikTok e mais de 4 milhões no Instagram.
Diferentemente do que pode parecer para muitos à primeira vista, a tendência tradwife não se trata apenas de glamour, pois inclui uma variedade de estilos de vida.
Hannah Neilman, de 34 anos, é uma influenciadora conhecida no TikTok como "Ballerina Farm". Na rede social, ela mostra sua vida em uma fazenda em Utah (EUA), onde organiza a casa, ordenha vacas, cultiva vegetais e cria oito filhos com o marido. Com quase 10 milhões de seguidores na rede social, a ex-bailarina, modelo e influenciadora incorpora um novo movimento online que promove a felicidade doméstica no estilo americano dos anos 50.
Tradwife: raízes históricas ou um ideal imaginado?
O movimento da "esposa tradicional" começou a ganhar popularidade nas mídias sociais há cerca de seis anos. Há quem diga que ele está ligado a um fórum antifeminista e misógino no Reddit, chamado "Red Pill". No filme Matrix, tomar a pílula vermelha (a red pill) significa ser despertado para a verdade - nesse caso, uma metáfora adotada por homens que sentem que sua masculinidade foi reprimida e que anseiam por papéis de gênero convencionais.
Mas a noção de esposa tradicional remonta ao ideal da família dos anos 50 nos EUA. Atualmente, essa ideia é uma fantasia nostálgica e classista, acredita Lisa Wade, professora de sociologia do programa de estudos de gênero e sexualidade da Universidade Tulane, em Nova Orleans (EUA).
Nos primórdios da história dos EUA, a maioria das famílias funcionava como uma pequena empresas na qual marido e mulher contribuíam para a viabilidade econômica, explica Wade.
"O ideal de um marido provedor e uma esposa dona de casa surgiu na década de 1950, mas rapidamente se desfez", conta à DW. "Na década de 1970, o modelo de família com dois salários tornou-se dominante devido à necessidade econômica, pois era cada vez mais difícil sustentar uma família com uma única renda", explica.
A pesquisadora acredita que a tendência tradwife "escolhe a parte da história que convém: um breve período em que homens brancos ricos e de classe média podiam se dar ao luxo de ter esposas que ficavam em casa". Mas isso ignora as realidades econômicas da maioria das famílias dos tempos atuais, diz Wade.
A tendência da esposa retrógrada atrai tantos fãs quanto haters. Alguns admiram a feminilidade dessas influenciadoras e sua escolha de se concentrar em suas famílias. Outros argumentam que essas mulheres retratam papéis de gênero ultrapassados e estão efetivamente se tornando prisioneiras em suas próprias casas.
Críticos dizem que o estilo de vida retratado é irrealista e inatingível para a maioria. Ser uma influenciadora tradicional nas mídias sociais é, por si só, um trabalho em tempo integral para aquelas que são bem-sucedidas o suficiente para monetizar sua produção.
Onde esposas tradicionais e ultradireita se encontram
Alguns também questionam se a promoção desse tipo de idílio doméstico faz parte de uma guerra cultural que atende a determinados fins políticos.
De acordo com a socióloga Viktoria Rösch, as tradwives fazem parte de uma discussão mais ampla sobre os papéis de gênero e como se deseja viver em sociedade. Mesmo que elas não se considerem políticas, sua representação de uma ordem de gênero específica as torna uma ferramenta útil para grupos de extrema direita, acrescenta Rösch. As tradwives tendem a culpar o feminismo moderno pelas dificuldades que as mulheres enfrentam atualmente, como equilibrar carreira e família. Isso reforça as ideias da extrema direita sobre a família e os papéis de gênero, detalha Rösch à DW.
O partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), normalmente conhecido por sua posição conservadora em relação a questões familiares e de gênero, tem conseguido aumentar sua popularidade entre as mulheres. O apoio ao AfD ainda é impulsionado principalmente por homens. No entanto, 15% das mulheres na Alemanha na faixa etária de 30 a 44 anos apoiam a legenda, segundo pesquisa realizada este ano pela empresa de radiodifusão alemã RTL.
A AfD usa em suas campanhas imagens que refletem ideias também promovidas - mesmo que inconscientemente - pelas tradwives. Por exemplo, uma publicação do partido no Instagram faz uma comparação entre "feministas modernas" e "mulheres tradicionais", por meio do uso de estereótipos negativos, como atratividade, escolhas de carreira e valores.
Kamala Harris: outra versão da feminilidade
Com a aproximação da eleição presidencial dos EUA, a moda das esposas tradicionais contrasta fortemente com a vida da vice-presidente americana Kamala Harris, que este ano concorre à Casa Branca pelo partido democrata.
Harris representa a mulher voltada para a carreira. Ela não teve filhos, mas ajudou a criar os dois enteados.
JD Vance, o candidato republicano à vice-presidência, fez comentários polêmicos sugerindo que as mulheres deveriam priorizar a criação dos filhos em detrimento da carreira. A candidatura de Harris, assim, desafia exatamente essas expectativas tradicionais, ressalta Wade.
Esse contraste torna a eleição americana um momento fundamental para determinar o que a próxima geração de mulheres realmente deseja, inclusive a liberdade de escolher a vida que desejam levar.
Esposa tradicional e esposa troféu: qual a diferença?
Outra moda que chama atenção nas redes sociais é a das "esposas troféu", que também são mantidas financeiramente pelos maridos e não trabalham formalmente. A grande diferença é que as esposas tradicionais fazem tudo em casa e as troféu, delegam. Nas redes sociais, elas mostram que, dentro de casa, apenas "orientam as funcionárias" para que estas realizem os trabalhos domésticos ou os cuidados com os filhos.
Para as "esposas troféu", a estética também é muito importante. A influenciadora Bruna Testoni Almeida, por exemplo, compartilha seu dia a dia de cuidados estéticos e soma meio milhão de seguidores no TikTok.
A rotina das esposas troféu inclui academia, salão de beleza, compras de artigos de luxo, tratamentos estéticos e tudo mais que as mantenham no padrão de beleza idealizado pela sociedade.
Mas a possibilidade de manter uma vida de luxo ao abrir mão da carreira para se dedicar a um relacionamento, onde o parceiro é o provedor, não faz parte da realidade da maioria das mulheres, sobretudo no Brasil, motivo pelo qual as duas tendências parecem muito distantes da maioria das famílias.