Entrevista
2 de novembro de 2008Cineasta peruana radicada na Holanda há 30 anos, Heddy Honigmann é autora de uma respeitável filmografia, que inclui diversos filmes entre documentários e ficção. Sua obra, muitas vezes premiada, já mereceu várias retrospectivas, entre elas uma mostra em 2007 no MoMA de Nova York.
Nascida em 1951 em Lima, filha de imigrantes judeus, Heddy Honigmann mudou-se em 1978 para a Holanda, depois de estudar Cinema em Roma. Da lista dos filmes que dirigiu faz parte O Amor Natural (1996), filmado no Brasil, Forever (2006) – uma belíssima incursão pelo cemitério parisiense Père Lachaise – e o mais recente El Olvido (O Esquecimento), premiado com a Pomba de Prata no Festival Internacional de Documentários e Filmes de Animação de Leipzig, que se encerra neste domingo (02/10).
O longa-metragem toma o entorno do Palácio do Governo, em Lima, para rastrear a galeria de pessoas que parecem "transparentes" para o universo do poder: garçons, engraxates, malabaristas do sinal de trânsito e meninos de rua. Entre estes, o pequeno Henry, que nega a memória e desconhece o futuro.
Questionado pela cineasta acerca de suas boas e más lembranças, o jovem engraxate afirma não se lembrar de nada do que ocorreu em sua vida no passado, nem ter desejos em relação ao futuro. Todos os personagens do filme "estão imersos nessa água turva que é o Peru. Você tem que nadar nisso para sobreviver", diz a diretora.
Em entrevista a DW-WORLD.DE, Honigmann fala de sua distância inevitável tanto da sociedade peruana quanto da holandesa, descreve a "mentalidade de sobrevivente" do sul-americano e comenta como o humor e a ironia são peculiares às sociedades latino-americanas.
DW-WORLD-DE: O personagem Henry, em seu filme, não tem memória acerca do passado e tampouco desejos em relação ao futuro. Este menino simboliza, de certa forma, toda a América Latina como um continente sem memória nem mesmo em relação ao passado recente e sem esperanças no futuro?
Heddy Honigmann: Isso acontece posteriormente, pois quando você está filmando, não pensa em símbolos. Penso que há uma pessoa na minha frente e não um símbolo ou um assunto, um tema. Depois, quando você está editando, você coloca aquela pessoa num lugar especial, ela toca você muito mais. Esse menino, no decorrer do processo de edição, se tornou o símbolo da falta de futuro e do esquecimento.
E quando as pessoas esquecem a própria história, há o perigo de repeti-la. Há um lado seguro no esquecimento: você esquece a dor. Você continua a viver e esquece os tempos ruins. Ou seja, não toma consciência a respeito de o que deveria fazer para evitar aquela situação novamente.
E por que a opção exatamente por este título – El Olvido (O Esquecimento)?
Porque é um filme sobre a cidade [Lima], sobre o país [Peru], contado através dos personagens que escolhi. Se você fala sobre o esquecer, está ao mesmo tempo falando da lembrança. No filme, há imagens dos presidentes, quando eleitos, jurando que irão defender a Constituição e os direitos das pessoas, jurando que vão fazer o melhor pelas crianças do Peru, que são o futuro do país. E depois esquecem completamente o que juraram, esquecem todo o país, todas as promessas.
Isso acontece com muitos políticos, não somente na América do Sul: você promete e depois esquece. Na América do Sul, isso tem lados muito dolorosos. Não é só o esquecimento, mas a corrupção total. Os presidentes são assassinos. [Alberto] Fujimori foi deportado para o Peru e está sendo agora julgado pela morte de muita gente.
O personagem do garçom, que prepara pisco sauer para os poderosos, parece saber muito bem lidar com toda essa situação através da ironia e de suas "pequenas vinganças". Você acredita que a maioria das pessoas na América Latina também é sábia neste sentido?
Não só no Peru, mas na América do Sul em geral, as pessoas são muito criativas. O humor e a ironia são uma forma de lutar contra toda a tristeza, contra tudo o que é negativo, perigoso. Se você não tem essa ironia, esse senso de humor, pode morrer moralmente muito rápido em certas situações. Para mim, é um privilégio filmar como essas pessoas conseguem lidar com as situações. Me pergunto como conseguem, mas eles mantêm tamanha dignidade e continuam achando que a vida vale a pena. E acredito que para eles vale mesmo a pena.
Um dos personagens do filme de quem gosto muito é o homem que trabalha com couro, que conserta bolsas e miudezas. Seu estabelecimento, antes, fornecia malas para ministros e pessoas ricas. Com a inflação gigantesca sob o governo Alan García, no fim dos anos 1980, ele perdeu 80% de sua propriedade, continuando com os 20%. Ele está todo o tempo muito emocionado, quase não consegue falar, quase chora. Pergunto por que e ele responde que não está chorando de tristeza, mas de alegria por ter sobrevivido.
No fim, ele diz uma frase maravilhosa: "É tão bonito sobreviver". Isso é inacreditável, é de uma beleza indescritível. Essa forma de se relacionar com a realidade é única. Filmar uma pessoa como essa é uma experiência formidável. Estou sempre tentando filmar pessoas que são mais fortes que eu mesma. O que, de fato, faço.
Você vive há muitos anos fora do Peru. Acredita olhar para o país como uma "estrangeira" ou como uma "nativa"?
Não tenho nem um olhar estrangeiro nem um olhar de dentro, tenho um olhar de cineasta, o que é, em primeira linha, o mais importante. Não penso como uma peruana que vive tão perto da realidade que teria que dar um passo para o lado para ver melhor. Vivo há 30 anos na Holanda, mas minha mãe vive no Peru, tenho família lá, visito meus familiares. Já havia feito um filme lá anteriormente [Metal e Melancolia, 1992], que ganhou a Pomba de Ouro aqui em Leipzig. Foi meu primeiro documentário depois de 15 anos de ficção.
Esse filme foi feito num momento em que Alan García tinha saído, Fujimori tinha acabado de assumir o poder. A inflação era altíssima, a classe média desaparecia. Encontrei, neste momento, a ironia das pessoas, que riam. A pessoa que abre o filme tinha um carro caindo aos pedaços. Eu disse isso a ele e ele respondeu que a vantagem é que ninguém roubaria este carro. Ou seja, roubam-se muitos carros no Peru, mas o dele não roubariam. Ele faz de toda desvantagem uma vantagem. Essa é a mentalidade do sobrevivente, ele tem que fazer isso. Os peruanos não só sobrevivem, mas muitos deles fazem isso com muito humor.
Gostaria de inverter a pergunta anterior: quando você faz um filme na Holanda, acredita que a sua própria história de deslocamento de um país para outro faz com que você adquira um olhar distinto sobre o país onde vive, um olhar perceptível nos seus filmes?
Sim, mantenho também uma distância quando filmo os holandeses. Não faço comparações entre eles e sul-americanos, pois desta forma você não pode fazer filmes. Olho para eles como pessoas com suas próprias personalidades, mas mantenho uma distância. Mantenho uma distância dos peruanos porque vivo há tanto tempo longe, e mantenho uma distância dos holandeses porque não sou de lá. Mas, na verdade, quando filmo músicos franceses em Paris ou brasileiros em O Amor Natural, tenho sempre a necessidade de manter certa distância, combinada com muita curiosidade. Acredito que sou bastante curiosa a respeito de como as pessoas realmente são e o que elas fazem, sobre como se confrontam com as situações.
Em O Amor Natural (1996), você trabalhou em cima dos poemas de Carlos Drummond de Andrade e escolheu pessoas idosas para o filme. Por que Drummond e por que brasileiros e idosos?
Tenho uma relação literária com o Brasil, um país que tem grandes poetas e escritores. Conhecia Carlos Drummond de Andrade desde que estudava Literatura no Peru. Quando já estava vivendo na Holanda, O Amor Natural foi traduzido para o holandês. Drummond escreveu esses poemas eróticos quando já estava velho. Ele não quis publicá-los em vida (a família fez isso depois de sua morte), pois tinha medo de ser acusado de pornografia.
As pessoas hoje esquecem o que é poesia. Estão acostumadas à internet, à rapidez. Não poderiam ler esses poemas como são. Pensei que uma forma de proteger os poemas e uma bela forma de fazer um filme sobre o amor poderia ser simplesmente entregar esses poemas às pessoas idosas. E por serem brasileiros, compreenderiam muito melhor os poemas do que holandeses ou ingleses, por exemplo. Eles compreenderam a beleza da poesia, que serviu como um tipo de catalisador de memórias sobre o amor e o sexo. Rodado com pessoas jovens, você poderia jogar esse filme no lixo.