Marina Silva: "Joaquim Leite é um negacionista convicto"
12 de novembro de 2021A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, que chefiou a pasta entre 2003 e 2008, criticou duramente a postura do governo do presidente Jair Bolsonaro na COP26, que chega ao fim nesta sexta-feira (12/11), em Glasgow, em entrevista à DW Brasil. Ela afirmou que, caso houvesse preocupação real com a preservação ambiental, o Fundo Amazônia não teria sido esvaziado.
"O governo brasileiro chega à COP26 como desacreditado, como pária ambiental, sem nenhuma credibilidade para nada do que diz, porque diz e não faz. E chega nessa situação de chantagista quando não é necessário. O Brasil não pode se colocar como se estivesse fazendo um favor ao mundo", disse.
Esta foi a primeira vez que Marina não participou da Conferência do Clima. Ela espera receber a terceira dose da vacina contra a covid-19 para voltar a participar de eventos presenciais.
A fundadora do Rede Sustentabilidade lembrou que o protagonismo exercido historicamente pelo Brasil nos fóruns ambientais internacionais foi conquistado pela apresentação de resultados. "Nós fizemos com recursos próprios, no passado, o Plano de Ação para Prevenção e o Controle do Desmatamento da Amazônia Legal, que deu a maior contribuição individual de um país para a redução de CO2 do mundo até hoje, evitando lançar na atmosfera mais de 5 bilhões de toneladas de CO2", disse.
Na quarta-feira, uma declaração confusa do ministro Joaquim Leite na COP26 repercutiu mal. Enquanto elogiava um programa criado no governo do presidente Michel Temer, cuja verba sequer saiu do papel, Leite afirmou ser preciso reconhecer que "onde há muita floresta, há muita pobreza". Marina reagiu com indignação.
"Só para ele ter uma ideia, a cadeia produtiva do açaí, produto da biodiversidade, já produz mais receita e empregos para o estado do Pará do que a Vale. A empresa gera 20 mil empregos, enquanto o açaí é responsável por mais de 300 mil”, comparou a ex-ministra, que criticou a falta de ações concretas para o desenvolvimento sustentável.
"A agricultura de baixo carbono tem 1% dos R$ 260 bilhões que vão para o Plano Safra. É isso que ele não diz, e porque é um negacionista convicto", afirmou.
DW: Como você avalia os resultados da COP26?
Marina Silva: Tenho acompanhado a COP com muita preocupação. Nunca antes o diagnóstico da ciência foi tão enfático e interativo de que algo precisa ser feito urgentemente, para que nós estabilizemos em no máximo 1,5°C o aumento de temperatura. Nunca a sociedade esteve tão mobilizada junto à comunidade científica. Os governos e empresas comparecem e dizem o que têm que fazer. Mas, quando somamos os resultados do que vai ser feito, mesmo se 100% for cumprido, ainda vamos para um aumento de quase 2°C na temperatura. Em alguns cenários, podemos chegar perto dos 3°C.
É entristecedor e, na minha opinião, isso tem uma razão de ser. Depois de tanto tempo fazendo diagnósticos, formulação de arranjos institucionais, propostas e regulamentações, não tem mais o que protelar nem o que dizer. Nós já estamos na regulamentação da regulamentação. O sistema de produção e consumo que nós temos está se sobrepondo à própria vida. Os governos dizem que têm de fazer, mas não fazem o suficiente. As empresas idem, porque entre mudar esse sistema e fazer o que precisa ser feito, há um engano de que ainda é possível protelar. Eu acho que esta é a dura e crua realidade. O que há de animador é verificar que a ciência continua firme, com ação totalmente independente, e a sociedade, muito mobilizada.
A frustração dos ambientalistas com os compromissos pouco ambiciosos assumidos na COP gera um questionamento sobre a capacidade dos mecanismos multilaterais em apresentar soluções para o desequilíbrio climático. Qual é a sua posição sobre a eficácia desses fóruns?
O sistema multilateral que nós temos hoje, liderado pelas Nações Unidas, não tem tido capacidade de responder às urgências e emergências que esse mundo globalizado coloca diante da humanidade. Mas não existe saída que esteja fora do multilateralismo, porque o problema das mudanças climáticas não se resolve de forma individualizada. Com a pandemia, na área da saúde pública, ficou comprovado que é necessário haver cooperação e esforço multilateral. O problema da disrupção tecnológica e do avanço da tecnologia são realidades inexoráveis. Todas essas questões precisam dos espaços multilaterais para poderem ter encaminhamento, sobretudo num sistema econômico totalmente integrado, como o nosso. O que precisa ser repensado é até que ponto essas fórmulas atuais têm efetividade, já que não temos observado isso.
É só vermos o que acontece em relação ao problema da covid-19: enquanto vemos que os países desenvolvidos e os países emergentes conseguem um número de vacinação, de cobertura vacinal desejável, os países da África e de grande parte da Ásia estão em uma situação de completa penúria.
Esse equilíbrio precisa acontecer da mesma forma no enfrentamento das mudanças climáticas, sobretudo na agenda de mitigação, precisa do necessário apoio de implementação. Um estudo encomendado pelo Reino Unido mostra que o mundo investe de 4 trilhões a 6 trilhões de dólares em subsídios para atividades que impactam negativamente o planeta, sobretudo as de carbono intensivo. Enquanto isso, há toda essa dificuldade para conseguir os 100 bilhões de dólares anuais para o fundo de ajuda aos países vulneráveis. É uma contradição muito grande que se faça um investimento na ordem dos trilhões para destruir o planeta e não se consiga mobilizar os 100 bilhões, sabendo que já são insuficientes, para ajudar as economias vulneráveis.
Os países ricos cobram maior comprometimento dos emergentes com as metas climáticas, enquanto a periferia global exige uma contrapartida financeira para implementar medidas de preservação. Como equacionar esse impasse?
Do ponto de vista do financiamento, os países emergentes não podem se colocar na mesma situação dos países vulneráveis, pobres, com muitas dificuldades de atendimento do básico do básico de suas populações. Estamos falando de nações sem acesso à tecnologia, nem a recursos financeiros, humanos e tecnológicos.
Países emergentes como o Brasil, por exemplo, já provaram que é possível reduzir suas emissões sem precisar fazer chantagem econômica para poder cumprir com suas obrigações. Esses recursos devem ser deslocados para quem precisa de fato, para poder se proteger — inclusive, dos efeitos causados por nós. O Brasil é um grande emissor de CO2, mas somos um dos países com as melhores condições para zerar as suas emissões, porque a maior parte delas vêm do desmatamento ou do uso da terra.
Como você mencionou, o governo brasileiro foi à COP com a expectativa de mobilizar recursos para a preservação climática, após ter esvaziado o Fundo Amazônia. Essa expectativa é factível?
O governo brasileiro chega à COP26 como desacreditado, como pária ambiental, sem nenhuma credibilidade para nada do que diz porque diz e não faz. E chega nessa situação de chantagista, quando não é necessário. O Brasil não pode se colocar como se estivesse fazendo um favor ao mundo.
Nós somos um país de alto risco climático, que sofre as consequências das mudanças climáticas, e precisamos entender que o nosso esforço deve ser de fazer 100% o dever de casa, inclusive a fim de termos credibilidade para cobrar que o mundo pare de emitir gás CO2, que eleva a temperatura da Terra, porque nós somos os maiores prejudicados.
Mesmo que façamos 100% do dever de casa, e o mundo não faça, nós continuamos sofrendo essa condição de sermos um país de risco climático. A nossa água e a nossa agricultura dependem da proteção da Amazônia.
Eu digo que na COP nós temos dois trilhos: o trilho desmoralizado, chantagista, desacreditado do governo, e o trilho altamente mobilizado, coerente, da sociedade civil e de uma pequena parte de empresas, porque tem muitos que falam, mas não fazem.
Nesse sentido, essa posição de chantagista não é necessária, até porque nós temos o Fundo Amazônia parado. O governo não faz uso pelo seguinte motivo: quer usar o dinheiro para promover ações que causam mais desmatamento, como fazer regularização fundiária de áreas que foram griladas usando terras públicas, exploração de madeira, criação de gado e assim por diante. Ele não quer dinheiro para preservar, ele quer dinheiro para desmatar mais, para queimar mais. Essa é a realidade, porque se ele quisesse fazer o dever de casa, usava o Fundo Amazônia.
Nós fizemos com recursos próprios, no passado, o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento, que deu a maior contribuição individual de um país para a redução de CO2 do mundo até hoje, evitando lançar na atmosfera mais de 5 bilhões de toneladas de CO2. O Fundo Amazônia não veio para nós fazermos, mas porque nós fizemos. Era como se fosse um prêmio para poder fazer mais.
Como você reagiu à declaração do ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, sobre reconhecer que "onde existe floresta, existe pobreza"?
Com indignação, porque onde existe a devastação do garimpo, existe violência, existe miséria, existe pobreza. Onde existe a devastação da exploração ilegal de madeira, existe crime, crime de lesa-pátria, de lesa-humanidade.
O que ele não diz é que onde existe floresta em que há um investimento para transformar os produtos dessa rica biodiversidade em atividades econômicas, existe riqueza. Apenas não foram feitos os corretos investimentos em recursos financeiros, humanos e tecnológicos para criar cadeias de produção integradas a mercados que demandam esse tipo de produto.
Só para ele ter uma ideia, a cadeia produtiva do açaí, produto da biodiversidade, já produz mais receita e empregos para o estado do Pará do que a Vale. A empresa gera 20 mil empregos, enquanto o açaí é responsável por mais de 300 mil.
Imagine o que pode ser feito quando a gente conseguir os investimentos maiores para a indústria do cupuaçu, do bacuri, para a indústria dos sistemas agroflorestais, de tantas oleaginosas, de tantas resinas e óleos que existem na Amazônia.
Essa forma predatória com lucros para poucos e desastre e violência ambiental para muitos tem mais de 300 anos de investimento. O que é feito de investimento, de assistência técnica, de marcos regulatórios, de financiamentos? A agricultura de baixo carbono tem 1% dos R$ 260 bilhões que vão para o Plano Safra. É isso que ele não diz, e porque é um negacionista convicto.
O protagonismo exercido historicamente pelo Brasil em fóruns internacionais sobre o clima é sempre citado por ambientalistas. Como isso se observava?
O Brasil tinha esse protagonismo por causa da nossa prática, e não do nosso discurso. Nós formulávamos em cima daquilo que estávamos nos dispondo a fazer. Por isso que fomos o primeiro país a assumir metas de redução de CO2. Como tínhamos conseguido reduzir as nossas emissões, nós sabíamos que poderíamos cumprir com as metas que estávamos assumindo.
O nosso protagonismo era tanto que a delegação brasileira sempre era uma delegação mista da sociedade civil com o governo. O espaço brasileiro era integrado, mas a sociedade mantinha sua independência, que é necessária haver, esticando a corda, seja qual for o governo. Havia um espaço de diálogo, formulação e cooperação.
Nos impasses, muitas vezes os negociadores entravam em diálogo com a nossa delegação, para que pudéssemos encaminhar as coisas juntos com o mínimo de respaldo na relação com aquilo que a comunidade científica e a sociedade civil tinham como expectativa e até mesmo como alternativas de proposta.
Hoje, o pavilhão do governo brasileiro é uma cidade fantasma, porque é oco, não tem proposta, não tem prática nem credibilidade. Quem quer passar perto daquela assombração que representa o governo Bolsonaro? No entanto, o espaço da sociedade é altamente frequentado, colorido e mobilizado.
Qual deve ser o papel do Brasil no debate climático e ambiental nas próximas décadas?
O que eu espero da diplomacia brasileira para o futuro é que ela possa voltar para os processos de negociação com o mesmo protagonismo de quem lidera pelo exemplo. O Brasil é um dos poucos países que podem liderar pelo exemplo: nós poderemos liderar pelo exemplo de ter uma matriz energética limpa, diversificada, com geração distribuída. Nós podemos liderar pelo exemplo de ter uma agricultura de baixo carbono, de ser os pioneiros daquilo que seria um novo ciclo de prosperidade a partir da bioeconomia, do respeito às populações locais. Que a diplomacia brasileira possa representar uma inflexão paradigmática em termos de modelo de produção e consumo, que combata desigualdades sociais, que preserva os seus ativos ambientais e que, ao mesmo tempo, respeita seus povos originários.
Você tem falado que não é possível pensar num nome para representar a "terceira via" na eleição de 2022 antes de um debate programático. Como você pretende participar desse processo?
Eu já me sinto contribuindo. Na Rede Sustentabilidade, estamos fazendo um conjunto de seminários, atualizando os eixos programáticos que já vínhamos trabalhando desde 2010, passando por 2014 e 2018, em um debate com a sociedade, formuladores de políticas públicas e movimentos sociais, para que a métrica da disputa eleitoral não seja apenas a do poder pelo poder.
Não é uma questão de ter um governo que não seja Bolsonaro, mas qual é a qualidade desse governo. E não falo só em relação às propostas, e sim saber qual é o pacto de sustentação política, o acordo político.
O [Arthur] Lira estava no governo da Dilma e do Lula, e o Centrão já estava no governo do FHC, em todos os governos. Precisamos fazer um debate que faça esse alinhamento num pacto de sustentação para um novo ciclo de prosperidade econômica, social, ambiental e de natureza política.
Nós estamos vivendo a situação que nós estamos vivendo porque, após a conquista da democracia, os partidos que tiveram maior tempo no poder acabaram arando um terreno que lhes permitiu contribuir com coisas interessantes – o PSDB com o Plano Real, o Lula e o PT com políticas sociais.
Mas olha o que nasceu, o que brotou das decepções que eles causaram. A lógica sempre foi se manter no poder, e não encarar que, numa democracia, é preciso criar processos institucionalizados, que devem ser continuados seja qual for a ideologia de plantão no Palácio do Planalto. Isso não foi feito.
Por que o Bolsa Família não foi institucionalizado e agora é substituído com outro apelido? Essa lógica de associar os programas aos partidos ou às figuras carismáticas é um atraso político, econômico e social. Espero que tenhamos aprendido, e que a candidatura que derrote o Bolsonaro seja aquela que faça o acerto de contas também com esses erros do passado, responsáveis por termos agora uma figura como Bolsonaro.
Sergio Moro é um nome com quem você estaria aberta a conversar para uma construção coletiva de projeto de país?
O Sergio Moro deu uma contribuição com a Lava Jato, mas infelizmente ele próprio foi responsável pelo desmonte daquilo que estava ajudando a construir, um processo em que a sociedade começou a acreditar que poderosos políticos e econômicos seriam tratados em conformidade com a lei e não com seus privilégios históricos.
Quando ele decidiu ir para o governo Bolsonaro, já foi um grande baque nessa lógica. Ao se colocar como candidato, agora, ele já tem todo o peso de ter revelado pelas circunstâncias de não ter cumprido com o devido processo legal das investigações que vinha fazendo, o desserviço que fez a própria Lava-Jato.
Eu quero que nós possamos construir um projeto de país que não coloque o poder em primeiro lugar. O poder é uma ferramenta, um instrumento.