Migrantes acusam Grécia de promover deportações ilegais
23 de maio de 2020"Venha conosco e nós emitiremos novos papéis para você", disse um policial grego a Bakhtyar numa manhã de quarta-feira, no final de abril. O afegão de 22 anos acreditava que a oferta era a chave para realizar seu sonho de começar uma nova vida na Europa. Porém, ele sofreu um golpe severo.
Dois meses antes, Bakhtyar havia atravessado o rio Evros, na fronteira entre a Turquia e a Grécia, uma rota importante para os refugiados que procuram chegar à União Europeia. Ele continuou em direção a Diavata, o campo oficial de refugiados estabelecido nos arredores da segunda maior cidade da Grécia, Thessalônica.
Ao chegar, teve o cuidado de se registrar na polícia grega, condição para pedido de proteção internacional – e um primeiro passo no processo de asilo. Uma fotografia de seu documento mostra a data de 12 de fevereiro de 2020. A pandemia de coronavírus fez com que a maioria dos serviços públicos fosse fechada, e Bakhtyar disse que estava ansioso pela reabertura, para que ele pudesse fazer um pedido oficial de asilo. Ele não teria a chance de fazê-lo.
Recordando seu encontro com a polícia em abril, Bakhtyar diz que foi colocado em uma van branca e levado para uma delegacia no centro da cidade de Tessalônica. Em vez de receber os documentos prometidos, Bakhtyar diz que a polícia confiscou todos os seus pertences, incluindo o celular. Mais tarde, ele foi transferido para outra delegacia onde, segundo ele, os policiais deram um tapa nele e o chutaram antes de colocá-lo na traseira de um caminhão. Bakhtyar lembra que um lençol foi usado para impedir que alguém visse quem estava dentro do caminhão. Ele não percebeu na ocasião, mas o automóvel estava indo para o leste – refazendo sua árdua jornada de volta à Turquia.
Quando o caminhão parou, Bakhtyar percebeu que não estava sozinho. Outros requerentes de asilo como ele estavam alinhados ao longo das margens do rio Evros. Ele se lembra de ver jovens sendo colocados em botes, dez de cada vez. O barqueiro, segundo Bakhtyar, falava grego com pessoas que ele supunha serem policiais e falava com os requerentes de asilo em sua língua natal, dari. A DW não conseguiu verificar de forma independente se os homens eram policiais gregos. Bakhtyar diz ter certeza de que não era a primeira travessia que esse barqueiro fazia à Turquia.
A fronteira entre Grécia e Turquia está fechada devido à pandemia. Todos os procedimentos oficiais de deportação foram suspensos. Quando Bakhtyar e outros requerentes de asilo chegaram à margem oposta do lado turco, não havia nada e ninguém esperando por eles. Quando a reportagem da DW se encontrou com Bakhtyar, ele estava no bairro de Esenler, em Istambul, que tem alta parcela de afegãos entre seus habitantes.
A cidade estava em lockdown na época, e era difícil se deslocar. Vestindo uma camiseta vermelha com a inscrição "Nova York" na frente, Bakhtyar parecia triste e chateado. Ele quer voltar para a Grécia o mais rápido possível para perseguir seu sonho de viver na Europa.
A experiência de Bakhtyar não é uma história isolada. Em uma apuração realizada numa parceria da DW com o jornal holandês Trouw, a rede sem fins lucrativos especializada em jornalismo investigativo Lighthouse Reports e o coletivo independente de verificação Bellingcat, foi possível localizar Bakhtyar e outros jovens na Turquia e verificar que eles foram devolvidos à força depois de terem estado na Grécia.
Os depoimentos deles, todos dados separadamente, estabelecem um padrão claro: homens, abaixo de 30 anos e viajando sozinhos. A maioria deles é do Afeganistão, alguns do Paquistão e do norte da África. Eles foram presos no campo grego de Diavata ou apanhados pela polícia local, aparentemente de forma aleatória, nas proximidades do campo.
DW entrevistou, juntamente com os parceiros de reportagem, várias testemunhas na Grécia e na Turquia. Foram coletados documentos da polícia grega para estabelecer uma cadeia de evidências, desde o campo de refugiados em Diavata até as ruas de Istambul. Foram usados dados publicamente disponíveis, incluindo postagens em redes sociais dos refugiados, que estavam com registros da data e hora em que foram postadas, mostrando fotografias de pontos turísticos na Grécia que puderam ser localizados geograficamente. Assim foi possível confirmar os principais elementos dos testemunhos.
No total, a reportagem conversou seis pessoas em Istambul que relataram suas experiências com "pushbacks" (empurrões) – como são chamados os retornos forçados de refugiados e migrantes através da fronteira – e localizou outras quatro em outras partes da Turquia, que puderam provar terem anteriormente estado na Grécia.
Os "pushbacks" são deportações realizadas sem considerar as circunstâncias individuais e sem dar a possibilidade de as pessoas darem entrada numa solicitação de refúgio ou de apresentarem recursos contra as medidas tomadas, de acordo com a Convenção Europeia de Direitos Humanos.
"Escravidão moderna"
Outra pessoa localizada em Istambul é Rashid, que fugiu de seu país natal, o Afeganistão, há três anos e foi para a Turquia. Ele trabalhou como empacotador e transportador em Ancara, a capital turca, antes de ir para Istambul, onde encontrou trabalho como soldador. Ele tem status de proteção temporária na Turquia, mas não recebe assistência médica ou moradia.
"Na Turquia, a vida é cheia de incertezas para os jovens afegãos que não têm acesso a serviços básicos de saúde e serviços sociais", diz à DW Zakira Hekmat, cofundadora da Associação de Solidariedade aos Refugiados Afegãos na Turquia. "Eles estão precariamente empregados, em trabalhos de salários baixos e sem permissão oficial. É escravidão moderna." Os homens afegãos na Turquia conseguem emprego principalmente na economia subterrânea, em trabalhos físicos pesados nas áreas de construção, transporte ou na indústria têxtil.
Na esperança de um futuro melhor, Rashid rumou da Turquia para a Grécia no início de 2020. Ele se lembra de atravessar o rio Evros com cerca de 20 outras pessoas em um barco. Ele diz que ficou em uma barraca por aproximadamente dois meses ao lado do campo de refugiados em Diavata. Mas tudo mudou para ele no final de março, quando ele retornava das orações de sexta-feira.
Rashid diz que foi parado pela polícia grega, que lhe disse para esperar. Ele então descreveu como uma van branca parou e homens armados sem uniforme apareceram. Eles disseram para ele entrar. Rashid diz que nem sabia quem eram os homens e que só descobriu mais tarde que eles estavam trabalhando com a polícia grega depois que ele foi levado para uma delegacia. A DW não conseguiu verificar a conexão entre os homens e a polícia.
Seus documentos gregos, originalmente válidos por um mês, haviam expirado, mas a renovação durante o surto de coronavírus não era possível, quando os escritórios de imigração estavam fechados. Na delegacia, segundo Rashid, a polícia confiscou todos os seus pertences.
"Eles não me deram sequer um copo de água na delegacia", lembra. Rashid não foi convidado a assinar nenhum documento pelas autoridades gregas. Ele diz que mais tarde foi conduzido por horas dentro de uma van pela Grécia e depois forçado a entrar em um pequeno barco para atravessar o rio Evros de volta à Turquia.
Há muitos relatos sobre supostos "pushbacks", especialmente na fronteira de Evros. Os testemunhos colhidos pela reportagem corroboram os relatos de organizações de direitos humanos que trabalham com a Border Violence Monitoring Network (Rede de Monitoramento de Violência na Fronteira), um banco de dados independente. Eles indicam que houve pelo menos cinco operações policiais realizadas no campo de Diavata entre 31 de março e 5 de maio, resultando na deportação aparentemente ilegal de dezenas de migrantes. Em quase todos os casos, a polícia parece ter como alvo jovens solteiros do Afeganistão, Paquistão e norte da África.
Vassilis Papadopoulos, presidente do Conselho Grego de Refugiados e oficial de migração em um governo anterior, vê um padrão claro nos "pushbacks". "Vans da polícia chegam ao campo, e os policiais fazem uma breve checagem das pessoas que ainda não estão registradas. Eles pedem seus papéis", diz. "Eles os detêm e dizem que serão levados para a delegacia, ou para verificação de documentos ou para fornecimento de documentos novos e, em vez disso, de acordo com as denúncias, são devolvidas à Turquia ", acrescenta.
"O que é importante e sem precedentes nessas acusações, se provadas verdadeiras, é que estamos falando de 'pushbacks' de dentro do país e mesmo assim de um campo, sem que nenhum procedimento formal de deportação seja seguido", ressaltou Papadopoulos.
O vice-ministro de Migração da Grécia, Giorgos Koumoutsakos, negou as acusações, ao ser questionado pela DW. "As alegações sobre violações dos direitos humanos por parte da polícia grega são fabricadas, falsas e não corroboradas", respondeu.
Fechando fronteiras
A Grécia está sob intensa pressão em suas fronteiras desde o final de fevereiro, quando a Turquia sinalizou o final do seu acordo de 2016 com a UE sobre a restrição dos fluxos de refugiados e migrantes. Ancara incentivou os migrantes a se dirigirem para as fronteiras terrestres e marítimas com a Grécia.
Atenas respondeu fechando suas fronteiras e suspendeu o direito a pedido de refúgio em março. Quando o sistema de asilo foi oficialmente retomado em abril, o número de chegadas estava 97% abaixo dos níveis de abril do ano passado, segundo estatísticas do Ministério de Migração e Asilo.
No início de maio, a imprensa grega informou que o governo estaria buscando promover uma "vigilância agressiva" para impedir a chegada de refugiados. O governo não especificou no que isso implica.
A DW entrou em contato com o Ministério de Migração e Asilo para obter mais detalhes sobre a extensão das atividades do governo. Koumoutsakos disse que "as medidas tomadas até agora foram proporcionais à gravidade da situação e buscaram objetivos legítimos, como, em particular, a proteção da segurança nacional, da ordem pública e da saúde pública".
O ministro grego de Migração e Asilo, Notis Mitarakis, defendeu a linha mais dura do governo em matéria de asilo e migração. "Não houve nenhuma chegada a nosso país em abril de 2020 graças aos grandes esforços feitos por nossas forças de segurança", disse à emissora de televisão estatal durante uma visita a Samos em 28 de abril.
No mesmo dia, no entanto, moradores daquela ilha do Egeu relataram na mídia local e no Facebook que haviam visto imigrantes chegando na aldeia de Drakei. Imagens de vídeo analisadas pela Lighthouse Reports e Bellingcat mostram um barco com 22 refugiados numa enseada em Samos por volta das 7h30 daquele mesmo dia.
Retirados da ilha de Samos, Jouma estava entre os refugiados que subiram o caminho íngreme da enseada remota até a vila. Era a quarta vez que o jovem de Damasco, na Síria, tentava chegar à Grécia. Por algumas horas, na manhã de 28 de abril, ele acreditou que finalmente havia conseguido.
Em um relato detalhado, Jouma lembra o que vivenciou depois que os refugiados chegaram a Samos. Ele diz que uma garota do grupo que falava um pouco de inglês pediu a um local para notificar a polícia grega de que eles haviam chegado. Os recém-chegados esperavam que fossem levados ao campo de refugiados de Samos. Em vez disso, a polícia os deteve e confiscou seus celulares. Eles foram levados para um porto, onde foram distribuídos em diversos barcos antes de serem carregados em um bote salva-vidas preto e laranja sem um motor ou remos.
Jouma diz que eles foram rebocados para águas turcas. A balsa foi posta à deriva no mar aberto, com as ondas empurrando-as de volta para a Grécia. Uma embarcação grega, então, os levou em direção à Turquia.
A pior coisa, diz Jouma, foi um barco a motor grego manobrando em torno deles tentando empurrá-los para as águas turcas, enquanto a Guarda Costeira turca apenas observava a situação. "A Guarda Costeira grega se retirou, para dar espaço para seus colegas turcos viessem nos pegar, mas eles não vieram, e isso continuou a noite toda", conta.
O grupo acabou sendo recolhido ao meio-dia no dia seguinte pelos turcos. As autoridades portuárias de Samos disseram à DW que não havia chegadas de requerentes de asilo na ilha em 28 de abril. O uso aparente de botes salva-vidas laranja em operações anteriores foi relatado pelo jornal grego Efimerida Ton Syntakton em 7 de abril.
"Pushbacks" e as leis da UE
A Grécia, como outros Estados fronteiriços da UE, como a Croácia, há muito tempo é acusada de realizar "pushbacks". Dimitris Christopoulos, que até recentemente era presidente da Federação Internacional de Direitos Humanos, diz que a nova intensidade de incidentes e o número de testemunhas levanta questões sobre até que ponto as autoridades gregas autorizaram esses pushbacks e até que ponto a UE está ciente do que está acontecendo na fronteira grega.
"Obviamente, essas táticas estão violando a Constituição grega e o direito internacional consuetudinário, mas parecem ser toleradas pela UE, uma vez que servem ao propósito de impedir que outras pessoas cruzem o Egeu ou o rio Evros para a Europa", diz Christopoulos.
Quando a DW novamente questionou o Ministério das Migrações e Asilo sobre a legalidade das táticas do governo, o vice-ministro Koumoutsakos negou categoricamente que tais operações estejam ocorrendo. "A Grécia cumpriu e continuará cumprindo suas obrigações sob o direito internacional, incluindo todos os tratados relevantes de direitos humanos dos quais faz parte, também atenta às suas obrigações no âmbito do quadro jurídico da UE em matéria de fronteiras, migração e asilo, como consagrados nos Tratados da União Europeia."
Jürgen Bast, professor de direito europeu na Universidade de Giessen, na Alemanha, chama essa estratégia de "pushback" de uma clara violação da lei. "Isso vai contra tudo o que o direito europeu estipula", afirma.
"Essas ações, como descritas pelos refugiados, violam todas as regras da diretiva oficial de retorno", diz Bast, referindo-se ao procedimento ordenado que implica um pedido de refúgio, incluindo uma entrevista pessoal e o direito do indivíduo de permanecer na Grécia até uma decisão ser tomada. "O país de destino também deve ser informado e pode ter o direito de recusar requerentes de refúgio rejeitados por países terceiros."
Nenhum dos jovens entrevistados pela DW disse ter sido notificado com antecedência de que teria que deixar a Grécia; nem deram a impressão de terem sido informados de seus direitos legais. Em
vez disso, as experiências relatadas por Bakhtyar, Jouma, Rashid e pelos outros entrevistados sugerem que esses retornos forçados na fronteira entre a Grécia e a Turquia se tornaram um padrão cada vez mais comum.
Desesperados para chegar à Europa Rashid agora vive em um apartamento apertado de Istambul com outros 10 jovens afegãos. Como um migrante sem documentos na Turquia, ele enfrenta a ameaça de ser deportado de volta para o Afeganistão.
Segundo estatísticas oficiais, 302.278 afegãos foram presos pelas forças de segurança turcas nos últimos dois anos. Desde 2018, tornou-se extremamente difícil para os afegãos entrar com pedido de refúgio na Turquia.
Rashid está desesperadamente procurando uma maneira de chegar novamente à Europa por se considerar num beco sem saída na Turquia. "Não sei o que farei aqui. Não somos culpados. Eu vou tentar atravessar a fronteira novamente. Eu preciso."
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