Movimento red pill expõe misoginia nas redes sociais
15 de março de 2023Nos últimos anos, influenciadores que instigam atitudes misóginas têm experimentado um aumento de popularidade nas redes sociais. Seguidores do chamado movimento red pill, eles promovem ideias sexistas que, muitas vezes, justificam o abuso e a violência contra as mulheres.
Muitos deles acumularam seguidores e prestígio, o que gera preocupações sobre a normalização da misoginia na sociedade, especialmente entre homens jovens que são atraídos pela confiança e assertividade que esses influenciadores exibem.
O termo red pill surgiu como uma referência à pílula vermelha do filme Matrix (dirigido pelas irmãs transgêneras Lana e Lilly Wachowski), no qual o protagonista pode escolher entre tomar a pílula azul e continuar num mundo de ilusões, ou engolir a vermelha e ser confrontado com a realidade nua e crua.
É uma ideologia que defende que os homens são naturalmente superiores às mulheres em inteligência, liderança e sociabilidade. Nessa visão de mundo, o feminismo e a luta por igualdade são formas de opressão dos homens.
Especialistas veem no movimento red pill uma reação às conquistas sociais por movimentos de igualdade de direitos para mulheres, negros e comunidade LGBTQIA+, que fazem muitos homens se sentirem ameaçados por perderem espaço social.
Um dos expoentes desse universo é o britânico-americano Andrew Tate. O influenciador é ex-participante do Big Brother do Reino Unido e já declarou que "mulheres são propriedades de homens".
A hashtag com seu nome acumula mais de 22 bilhões de visualizações no TikTok. Tate está preso na Romênia, onde vive desde 2017, acusado de estupro, tráfico humano e formação de grupo criminoso. Ele nega todas as acusações, mas já teve vários apelos por liberdade rejeitados.
Na semana da sua detenção, resolveu provocar no Twitter a jovem ativista climática Greta Thunberg. Numa postagem, Tate se vangloriou de ter 33 carros e pediu a Thunberg que lhe enviasse seu endereço de e-mail para que ele pudesse enviar à ativista "a lista completa da coleção de carros e as respectivas emissões [de gases com efeito estufa] descomunais".
Thunberg respondeu para que ele enviasse as informações para [email protected] (energiadepê[email protected]).
Red pill no Brasil
No início de março, um caso envolvendo o influenciador Thiago Schutz e a humorista Lívia La Gatto chamou a atenção para o movimento red pill no Brasil. O influenciador brasileiro, de 34 anos, se apresenta como "coach de masculinidade".
Ele ficou conhecido por um vídeo no qual apresenta suas ideias de manipulação feminina com o exemplo de uma mulher que oferece cerveja a um homem que bebe Campari. Foi aí que ele ganhou os apelidos de Coach do Campari e Calvo do Campari.
La Gatto é uma atriz e roteirista, defensora da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres. Após publicar um vídeo em que parodia os "ensinamentos" de Schutz, ela passou a receber ameaças dele, que chegou a afirmar "é processo ou bala".
Schutz, que na verdade se chama Schoba, foi denunciado à Justiça e está com sua conta pessoal do Instagram suspensa. A página profissional do seu treinamento, contudo, permanece ativa, com 342 mil seguidores.
O perfil de Schutz, que se chama Manual Red Pill, é apenas uma das centenas de perfis que pregam a superioridade masculina nas redes sociais. As ideias de Andrew Tate já foram reproduzidas na página do brasileiro.
"Misandria" na legislação
A professora Jeane Félix, que pesquisa gênero, sexualidade e juventudes na Universidade Federal de Alagoas, afirma que o red pill estimula a desvalorização e objetificação das mulheres, "o que é um prato cheio para a violência de gênero".
A pesquisadora afirma que a cultura red pill também pode gerar um impacto negativo na saúde mental do próprio público masculino, como problemas como ansiedade, ao pressionar por atitudes consideradas masculinas, como reprimir emoções.
O movimento red pill sustenta que há misandria, ou seja, uma discriminação dos homens, em legislações. De acordo com essa perspectiva, legislação em vigor em vários países favorece as mulheres em detrimento dos homens, principalmente em questões relacionadas à guarda dos filhos, pensão alimentícia e acusações de violência. Para defensores do grupo, a Lei Maria da Penha seria um exemplo disso.
"Como mulher, fico extremamente preocupada com o retrocesso no que nós lutamos arduamente para conquistar. Mas, como cientista, sei que essas ideias não se sustentam", afirma Félix.
Pesquisas mostram que bem menos da metade das mulheres vítimas de agressão faz uma denúncia. Entre as muitas razões, isso se deve à dependência financeira, à preocupação com a criação dos filhos, à vergonha pela agressão sofrida e ao medo do agressor.
Educação sexual nas escolas
O episódio envolvendo Schutz e La Gatto evidenciou a força que ideologia red pill tem ganhado no Brasil, especialmente em fóruns na internet e nas redes sociais, onde qualquer pessoa pode compartilhar suas opiniões e crenças, por mais ofensivas que sejam.
Mas, para a professora Félix, a força do movimento red pill no Brasil é também fruto da falta de debate sobre gênero nas escolas.
Ela argumenta que a educação sexual foi sendo gradativamente deixada de lado nas escolas. "Desde 2010 essa temática foi sendo polemizada, retrocedendo e sendo proibida. Há quase uma interdição de se falar de gênero na escola, com perseguições e demissões para quem tenta. Construíram um factoide da ideologia de gênero , e pessoas que nem sabem o que é essa ideia já são contra", afirma.
Quem acaba tomando o lugar que a escola deveria ter na educação sexual são as redes sociais, que já são a principal fonte de informação dos brasileiros. Um levantamento da Reuters Institute Digital Report mostrou que, em 2022, elas foram fonte de informação para 64% dos brasileiros, 9 pontos percentuais à frente da televisão.
Essa preferência é puxada sobretudo pelo comportamento do público jovem, conforme estudo do site Meio e Mensagem. E é nesse cenário que influenciadores digitais se destacam, como o próprio nome diz, influenciando seus seguidores.
Para Félix, é por essa razão que conteúdos educacionais também devem estar mais presentes nas redes sociais. "A desconstrução dessa mensagem opressora passa inevitavelmente pelo uso das redes sociais como um espaço de comunicação educativo", afirma.
Outro caminho que a especialista aponta é a retomada do debate sobre gênero e sexualidade nas escolas, mesmo que na abordagem de outros aspectos. "Alguns colegas levam o tema para a sala de aula com as discussões de empoderamento feminino e igualdade de direitos, levam dados de violências contra as mulheres e a comunidade LGBTQIA+, por exemplo. Acho que é uma possibilidade, para ir adentrando nessa conversa com mais rapidez e para dialogar com as famílias, mostrando o impacto positivo de se ter uma educação nessa temática", comenta.