"Nós, indígenas, vivemos uma guerra invisível"
3 de junho de 2022No amplo centro de eventos que abriga a conferência ambiental Estocolmo+50, na capital sueca, a jovem líder indígena Txai Suruí é notada pelos participantes. Mesmo os que passam apressados fazem uma pausa para falar com ela, tiram foto. E jornalistas internacionais pedem uma entrevista.
O discurso que Txai fez na abertura da última conferência do clima (COP26), em dezembro de 2021, parece ainda ecoar. Em Estocolmo não há programação para uma fala dela diante da plateia, mas a visão dos povos indígenas sobre o que acontece no Brasil é alvo frequente de interesse nos bastidores das reuniões.
"A gente está aqui para acompanhar a conferência e também tentar encontrar algum representante do governo brasileiro", diz Txai, que está na conferência como representante da ONG Kanindé Associação de Defesa Etnoambiental, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia.
Frustrada com o papel de seu país de origem na agenda ambiental, a jovem líder diz que o Brasil pratica greenwashing (injustificada apropriação de virtudes ambientalistas) em reuniões como a de Estocolmo. A situação, rebate, é de guerra.
"Quando 20 mil garimpeiros estão dentro de uma terra indígena, e todo mundo sabe que estão estuprando mulheres e crianças, onde pessoas estão passando fome, é uma guerra. A gente está vivendo uma guerra, só que é invisível, as pessoas não olham", argumenta em entrevista à DW Brasil.
DW Brasil: Na Estocolmo+50, uma reunião que celebra os 50 anos da primeira conferência do mundo sobre meio ambiente e discute o bem-estar futuro da humanidade no planeta, por que é importante a participação da juventude brasileira?
Txai Suruí: A gente está aqui para acompanhar a conferência e também tentar encontrar algum representante do governo brasileiro, ver se vai sair algum documento oficial e ver a que passo o mundo e o Brasil estão andando na direção para contornar esta crise climática.
A gente está aqui para mostrar para o restante do Brasil e do mundo o que está acontecendo na Estocolmo+50, porque não é todo mundo que pode estar aqui. Ainda tem poucos indígenas do Brasil aqui, e é importante esta representação.
Quando a gente fala de mudanças climáticas, de meio ambiente, a gente está falando primeiramente sobre gente, sobre a floresta, sobre a Amazônia, sobre os povos indígenas. Já somos os principais afetados por toda essa crise e também estamos na linha de frente da proteção dessas florestas.
Os povos indígenas são 5% da população mundial, mas protegem 80% da biodiversidade do planeta. Como esse tipo de evento acontece e a gente não está aqui? A gente está aqui para ocupar esses espaços que vão falar sobre o nosso futuro, as nossas vidas.
A diplomacia brasileira ajudou a fixar esse conceito de desenvolvimento sustentável na agenda das Nações Unidas, principalmente depois de receber a Rio-92. Como os jovens indígenas veem os passos que o Brasil tem dado rumo ao desenvolvimento sustentável?
O Brasil é importantíssimo quando a gente vai falar do meio ambiente em todas as conferências que tratam do tema. Ele sempre foi essencial, e aí ele pode se colocar no papel de ser herói ou vilão. Hoje a gente está vendo que o Brasil é o vilão.
Ele passou do protagonismo de quem está ajudando a criar o termo desenvolvimento sustentável para virar o país que está sendo visto pelo mundo como destruidor da Amazônia, destruidor das florestas. Estamos vendo os maiores índices de desmatamento dos últimos 15 anos.
O problema é que a gente não tem mais tempo. Os recursos do planeta não são ilimitados. Na verdade, quem vai desaparecer é a gente. A maior parte da Amazônia está no Brasil, com a maior biodiversidade de animais e plantas, e de povos também. E a gente vem tratando os povos indígenas como um obstáculo para o tal chamado progresso.
A gente vive em harmonia com a natureza há milênios, a gente tem muito a ensinar e falar sobre isso. Muitas pesquisas mostram que o manejo dos povos indígenas contribui para que ela seja essa enorme floresta. Os territórios indígenas protegem a floresta.
O que vocês esperam de reuniões diplomáticas como esta de Estocolmo?
Existe uma grande diferença entre expectativa e realidade. A expectativa seria que a discussão sobre o percurso em que estamos desde a primeira conferência [climática], o que a gente precisa fazer para melhorar. Mas, para isso, a gente precisaria ter mais representatividade aqui, mais povos indígenas de todo o mundo, ter populações que realmente estão sofrendo com a degradação ambiental. A gente precisaria de representantes dos nossos governos comprometidos com essa causa, mas não é o que está acontecendo no Brasil.
Infelizmente, a realidade é que a gente ainda tem pouco diálogo e pouca ação. A gente continua só falando, falando, falando, quando a gente não tem mais tempo de falar. A gente já está sentindo a mudança.
Exemplos das mudanças climáticas no Brasil são muitos, como as tragédias provocadas pelas chuvas extremas na Bahia, Minas Gerais, Petrópolis, Recife.
Antes de vir para Estocolmo, estava na minha aldeia. Lá a gente está vendo que este ano o rio vai secar todo. A chuva, quando é para cair, não cai mais, ou demora para começar. Às vezes chove quando não é época.
Tudo isso prejudica as nossas plantações, a nossa alimentação e faz nossas plantas medicinais desaparecerem. Hoje já tem planta que a gente não encontra mais. A gente já está sofrendo as consequências das mudanças climáticas agora.
O Brasil, na visão de vocês, está desempenhando um bom papel aqui?
O Brasil deveria estar aqui como um país-chave para reverter essa crise.
O ministro do Meio Ambiente virá. Eu quero ver qual será a posição do país. A gente vê que internamente o país tem um projeto: o que vem acontecendo nos territórios indígenas, toda a destruição que a gente está vendo, os ataques que os ativistas de direitos humanos estão sofrendo é proposital.
O que está acontecendo dentro dos nossos territórios tem incentivo do governo para que invasores entrem. O Brasil vem colocando um projeto antiambientalista e anti-indígena em curso. Existem leis tramitando que querem acabar com as nossas terras e permitir grandes empreendimentos sem levar em consideração tratados internacionais.
Mas quando chega aqui, como aconteceu na última COP, o Brasil faz greenwashing, fala que protege a Amazônia. Mas a gente está aqui para falar a verdade, dizer que o que está acontecendo no Brasil é que os povos tradicionais, ribeirinhos e quilombolas é que preservam e que estão sofrendo.
O que você falaria para plateia aqui em Estocolmo?
A gente está vendo pouca movimentação dos países aqui. Fala-se demais, mas nada é feito.
Hoje a Europa está preocupada com a guerra na Ucrânia, e estão certos. O problema é que hoje qualquer coisa tira o foco do meio ambiente, das mudanças climáticas, enquanto elas estão acontecendo agora. A própria guerra traz consequências para as mudanças climáticas.
A gente também está vivendo uma guerra no Brasil: quando 20 mil garimpeiros estão dentro de uma terra indígena, como o que está acontecendo com os yanomami, e todo mundo sabe que estão estuprando mulheres e crianças, onde pessoas estão passando fome, é uma guerra. A gente está vivendo uma guerra, só que é invisível, as pessoas não olham.
Mas essa guerra vai ter uma consequência para o mundo inteiro. No momento em que a Amazônia acabar, que as florestas forem destruídas, não tem salvação, não tem vida para ninguém.