O Brasil na imprensa alemã (02/11)
2 de novembro de 2022Neues Deutschland – Bolsonaro incita ao tumulto (02/11)
Eliane Mouco se diz patriota, por isso está aqui. "A gente não aceita o resultado da eleição. Teve fraude." Envolta numa bandeira nacional, a mulher de 37 anos está sentada num pedaço de papelão numa autoestrada de São Paulo. Junto com uns 40 correligionários, ela bloqueia um dos acessos ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. O grupo chegou 12 horas atrás, com uma intenção: protestar contra a "eleição roubada", através de um bloqueio da estrada. O mesmo acontece em outras partes do país.
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A pressão sobre o perdedor é grande. Alguns de seus aliados próximos reconheceram o pleito, diversos chefes de Estado conceituados parabenizaram Lula. Consta que certos assessores de Bolsonaro teriam tentado convencê-lo a ceder. Mas para o presidente a base eleitoral radical é importante. Se ele se curvar à pressão, pode ser visto como fraco e incoerente. Pode ser uma tática para mantê-los ligados e especular com os distúrbios no país.
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Alguns fãs de Bolsonaro exigem abertamente uma intervenção militar e espalham o boato de que o Exército vai intervir depois de 72 horas. Indagado se tudo permanecerá pacífico, um bolsonarista só dá de ombros e sorri com escárnio.
Até agora são principalmente protestos de indivíduos que se organizam nas redes sociais. Mas, caso o número das manifestações cresça, a coisa pode ficar perigosa. Há quem tema imagens como as de 6 de janeiro de 2021 em Washington, quando simpatizantes radicais de Trump invadiram o Capitólio. Por medo de distúrbios, a Esplanada dos Ministérios foi fechada preventivamente.
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É mais do que questionável que os bloqueios em estradas vão alterar de algum modo a troca de poder. Mas os protestos mostram: o bolsonarismo é forte, mesmo sem discursos diretos de Bolsonaro. Realmente se conseguiu fundar um movimento ativo, e não só na internet.
E se Bolsonaro reconhecer o resultado das urnas? "A gente não vai desistir", diz Eliane Mouco. "Vamos continuar lutando pela liberdade." No meio tempo, nesta terça-feira o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) convocou seus ativistas a ajudarem na retirada das barricadas, perante a inação da polícia. Mas cabe evitar confrontações com bolsonaristas.
Süddeutsche Zeitung – O grande modelo do norte (02/11)
Joe Biden logo parabenizou Luiz Inácio Lula da Silva, como é a praxe entre democratas. No domingo, o presidente dos Estados Unidos enviou imediatamente congratulações ao futuro colega do Brasil, após a vitória deste em "eleições livres, justas e confiáveis", segundo informou a Casa Branca.
Desse modo, Washington reconheceu Lula rapidamente. Mas no norte da América existe um outro político conhecido que se pode considerar ídolo de Jair Bolsonaro. No pior dos casos, o futuro próximo do Brasil se guiará pela cartilha dele, Donald Trump.
Até hoje, Trump não reconheceu publicamente sua derrota nas eleições presidenciais americanas de 2020. Pelo contrário: há mais de dois anos os republicanos e seus aliados esbravejam sobre uma "grande fraude": a vitória de Biden seria roubada – embora o resultado a favor dos democratas esteja documentado acima de qualquer dúvida.
"The big lie", a grande mentira, é como se chama essa versão. Seu veneno se infiltrou fundo na sociedade americana – pelo menos naquela parte que ainda venera Trump, apesar de todos seus escândalos, ou justamente por causa deles, e quer tê-lo de volta ao Salão Oval nas eleições presidenciais de 2024.
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O caso Trump mostra de modo eloquente que a pessoa não some só porque foi oficialmente destituída por votação.
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O filho de Bolsonaro Flávio, senador, usou palavras quase idênticas às de Trump, e já na quarta-feira, antes da derrota do pai no segundo turno, tuitava sobre "a maior fraude eleitoral que já houve". Um outro filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, mantém contatos estreitos com os círculos de direita dos EUA que fazem propaganda para seu pai. Segundo Darren Beattie, que escrevia discursos para Trump, Bolsonaro defende aquele tipo de nacionalismo "que a gente quer e apoia". Lula representa "a forma mais destruidora e corrosiva" do comunismo.
Os Estados Unidos da América mostram em que resultam suspeitas constantemente repetidas e ataques permanentes. A violência política, sobretudo direitista, cresceu consideravelmente – veja-se a invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021, ou, mais recentemente, o atentado à casa da democrata Nancy Pelosi.
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A questão é o que a tática de Trump significa para Bolsonaro. Não há "nenhuma possibilidade de que o resultado das urnas eletrônicas esteja correto", afirmou o ex-agitador trumpista Steve Bannon ao jornal Folha de S. Paulo. "Precisamos de uma apuração de urna a urna, mesmo que dure seis meses." No meio tempo, o presidente não deve aquiescer em deixar seu cargo.
Isso soa como a estratégia de Trump e seus aliados, que depois de novembro de 2020 exigiram recontagens. [...] Num live stream com correligionários, nos EUA, Steve Bannon, que assessorou Trump, disse que Bolsonaro não pode ceder, "impossível".
Berliner Zeitung – Do cárcere à vitória (01/11)
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Em seu primeiro discurso, Lula afirmou que será presidente para todos os brasileiros, não só para os que o elegeram. Também na campanha eleitoral ele se apresentou como grande conciliador. Mas não será fácil.
Bolsonaro pode ter ficado atrás de Lula, mas obteve um resultado alto nas urnas. Seu partido terá a bancada mais forte da Câmara dos Deputados. Os três estados brasileiros mais populosos, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, passarão a ser governados por aliados bolsonaristas. Lula terá que lutar duro para conseguir maiorias. Ele está ciente disso, e na política agora se move nitidamente em direção ao centro.
E, como Bolsonaro, também Lula é uma figura odiada por muitos brasileiros. Passados os anos de júbilo [de sua presidência], não demorou até que se gritasse "Lula: ladrão" nas manifestações e se erguessem no ar bonecos do ex-presidente vestido de presidiário.
A partir de 2014, o Partido dos Trabalhadores se transformou numa superfície de projeção para a decepção de toda uma nação. Depois do começo de uma grave crise econômica, porém sobretudo da revelação de gigantescos escândalos de corrupção, de repente Lula passou a ser considerado o cabeça de uma rede criminosa.
Em 2016 a sucessora e afilhada política de Lula, Dilma Rousseff, foi deposta num processo de impeachment, questionável do ponto de vista jurídico. No domingo, também ela estava presente em São Paulo: "Esta vitória representa muito para os brasileiros", comentou ao Berliner Zeitung. "Nós mostramos que estamos de volta."
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Der Tagesspiegel – Um suspiro de alívio. E aí? (01/11)
E o que é que acontece agora, depois do primeiro suspiro de alívio? Claro, a maioria dos Estados democráticos da América e da Europa está aliviada pelo resultado da eleição presidencial no Brasil. O radical de direita Jair Bolsonaro foi derrotado pelo candidato de esquerda Luiz Lula da Silva; não terá um segundo mandato em que possa continuar derrubando a floresta amazônica, demonizando seus adversários e minando a confiança na democracia.
Mas o que se segue à eleição? Acima de tudo se evocam esperanças que não correspondem à realidade do Brasil: o vencedor Lula iria superar a cisão política do país, reconciliar os polos políticos hostis, salvar o ecossistema da Amazônia e o clima junto, fortalecer a ordem democrática e resgatar o país de um suposto isolamento internacional.
Se é para tudo isso dar certo, era melhor os brasileiros terem escolhido um outro presidente. Lula não é nenhum ser de luz. Ele já foi presidente em dois mandatos, de 2003 a 2011. Com sua sucessora, Dilma Rousseff, que acabou sendo destituída do cargo, preparou o terreno para que Bolsonaro vencesse claramente em 2018, num pleito de protesto contra a exploração do Estado pela ala de esquerda. Antes, Lula fora condenado a uma pena de prisão. Ele não teve que cumpri-la porque os juízes a declararam tendenciosa, porém exonerado das acusações, ele não foi.
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Assim como o ancião [Joe] Biden, aos 77 anos Lula já parece uma personagem de ontem. Ele não encarna nem a mudança de geração nem o frescor que seriam necessários para sinalizar tanto à sociedade brasileira quanto os parceiros no exterior que, após uma perigosa fase de confusão, nasce uma nova época de estabilidade e confiabilidade.
Por isso é aconselhável olhar para o Brasil com modéstia. O eleitorado se decidiu por Lula por uma maioria apertada, não por causa dele próprio, mas para evitar alguém pior ainda. A divisão da sociedade em facções inimigas permanece, não há truques de mágica para superá-la.
Nesta situação já seria positivo se Bolsonaro não conclamasse seus adeptos a resistirem, e o Brasil fosse poupado da prova pela qual os EUA tiveram que passar. Aqui, como lá, a tarefa premente seria iniciar uma troca de geração entre as candidatas e candidatos, antes que seja a hora da próxima eleição.
av (ots)