"O espaço para Deus fica cada vez menor"
11 de novembro de 2005DW-WORLD: Professor Hasinger, o senhor é astrônomo e, por força da profissão, tem diante dos olhos toda a história do universo. O que aprendemos ao espreitar o berçário do cosmos, auxiliados pela radiação cósmica de fundo?
Günter Gustav Hasinger: A radiação cósmica de fundo em microondas (RCFM) foi criada quando a quentíssima "sopa primordial" do cosmos começou lentamente a esfriar. O cosmos tinha uma temperatura aproximada de 3000ºC, 380 mil anos após o big bang. Nestas condições, o plasma – ou seja, o estado de matéria onde elétrons e prótons ainda estão separados – se funde em átomos. Trata-se de um momento extremamente importante, pois súbito o universo se torna transparente. Agora podemos vê-lo, antes era numa névoa densa.
Devido à expansão contínua do universo, a temperatura baixou cerca de mil vezes, circulando, como hoje, em torno de 3ºC acima do zero absoluto. A radiação cósmica de fundo é absolutamente homogênea em todas as direções. Em todo lugar é a mesma, até o décimo milionésimo grau centígrado. Entretanto existem diferenças mínimas, uma espécie de ruído uniforme. A partir deste é que se formou a Terra e nós, humanos.
Hoje em dia é um fato consumado que houve uma grande explosão (big gang). Mas quem explodiu, e por quê?
Considerando todo o potencial energético do cosmos – as estrelas, os planetas e tudo o mais –, chegamos à conclusão de que a matéria visível não basta, nem de longe, para compreendermos as leis do cosmos. Precisamos somar a assim chamada "matéria escura" e – esta é uma constatação dos últimos cinco anos – também a "energia escura".
A imagem do big bang não é, na realidade, totalmente correta: em princípio ele ainda está ocorrendo. Pois o cosmos continua se expandindo, as galáxias continuam se acelerando e se afastando umas das outras. A razão para tal é, justamente, essa energia escura, uma espécie de força repulsiva. Ela também existe onde não há "nada". O que classificamos como "nada", por exemplo, o que havia antes do universo, é, mesmo assim, cheio de energia, que borbulha no nada, sem cessar. Desse borbulhar – semelhante a uma panela em fervura – sobe aqui e ali uma bolha, da qual poderia nascer um novo universo.
Mas nada vem do nada, pelo menos é o que diz o ditado popular. Como é possível, no universo, tudo vir do nada?
Temos que mudar nossa imagem do nada. Quando retiramos tudo de um espaço, sempre sobra algo: a energia do vácuo. Esta é maior do que toda a energia contida no universo. Ou seja, o universo "a pegou emprestada", transformou-a em matéria e formou estruturas. O que havia antes, e o que possivelmente se desenrola por trás de nosso universo, sobre isso só podemos especular no momento, pois ainda não entendemos a física envolvida.
As especulações a respeito são numerosas. Segundo uma delas, haveria os assim chamados "multiversos", exatamente como numa panela, onde as bolhas sobem sem cessar. Isso significaria que o nosso universo é apenas um dentre muitos. Uma outra teoria parte do princípio de que o nosso universo toma formas diversas, em seus diferentes pontos. Talvez possua prolongamentos em forma de tubos, nas pontas, que por vezes se estendem. Talvez haja muitos pontos tão distantes que nunca os alcançaremos. E onde as leis físicas são completamente outras.
Leia sobre buracos negros e a formação dos corpos celestes na página seguinte
Se a energia escura pode se materializar em um universo, segundo quais princípios funciona esse mecanismo? De onde essas "células geminais" tiram a matéria visível para, por exemplo, formar corpos celestes?
Para que fique bem claro: as leis físicas para descrever esses fenômenos ainda não estão totalmente delineadas. A Teoria da Relatividade de Einstein descreve um aspecto do universo, e a mecânica quântica um outro, porém as duas não combinam entre si.
No caos ocorrem sem parar pequenas flutuações, chamadas "flutuações quânticas". A mecânica quântica permite, por um curto espaço de tempo, transformar energia em matéria e vice-versa, sem que o percebamos. Trata-se do "princípio da incerteza de Heisenberg". As assim chamadas "partículas virtuais" criam-se a partir da energia, por uma fração mínima de tempo, e retornam com a mesma velocidade ao estado de energia.
Contudo, também pode ocorrer que subitamente partículas reais nasçam de um par de partículas virtuais. Por exemplo, que uma das duas partículas – a posititva ou a negativa – seja sugada por um "buraco negro". Então a outra restaria, e de repente uma partícula real teria se criado do nada. Em decorrência das particularidades quanto-mecânicas do acaso e do contínuo espaço-tempo, partículas criam-se sem cessar. Simplesmente não as vemos...
... porque foram, por exemplo, devoradas por um buraco negro?
Não necessariamente. Pois mesmo que um buraco negro exista em meio ao vácuo absoluto – no "nada", portanto – há, ainda assim, flutuação quântica ao seu redor. A parceira de uma partícula dupla talvez fique presa num buraco negro, porém a outra partícula consegue escapar. Desse modo um buraco negro pode irradiar energia, sem ter que, para tal, devorar matéria. Em conseqüência, um buraco negro diminui muito, muito lentamente de tamanho, e ao fim de sua vida se destrói, "auto-irradiando-se".
A radiação que escapa é passível de se rematerializar?
As partículas de luz flutuam pelo universo até reaparecerem em outro lugar. Mas a maioria dos fótons não aparece em lugar nenhum. Algum dia, o universo se inflará exponencialmente, tornando-se absolutamente escuro. Ele se adelgaria então de tal maneira que um punhado de partículas luminosas não seria mais perceptível, em meio a toda a energia escura. Este seria provavelmente um estado como antes do big bang. Caso a energia escura realmente possua as características que lhe atribuímos no momento, ela estaria sempre lá, mesmo onde nada existe.
E quem ou o que controla a energia escura?
Aqui chegamos ao ponto onde a filosofia, ou a religião, começa. A questão é: quem controla todas as leis da física? Pois elas precisam já estar lá, antes de se aplicarem ao já existente. A Bíblia diz: "O espírito de Deus pairava sobre as águas". O que equivale a: o espírito de Deus – ou será a energia escura? – pairava sobre o caos que precedeu à Criação.
Em que momento ultrapassamos os limites das ciências naturais, para além das quais não se pode saber mas sim apenas acreditar? Onde se localizam as fronteiras do conhecimento?
Na minha opinião, as fronteiras continuarão sempre se expandindo. E isso entra em choque com o conceito de Deus. Pois, com o conhecimento crescente, ficaria cada vez mais reduzido o espaço para Deus.
Antigamente Deus ficava sentado nas nuvens, lançando raios durante as tempestades. Até se descobrir que se tratava da eletricidade, não de Deus. Atualmente há outras coisas que não compreendemos. Por exemplo, até hoje não entendemos como nasceu a vida. E não sabemos se há vida em outros planetas.
Portanto podemos dizer: a vida foi criada pelo bom Deus. Contudo suponho que, num futuro não tão distante, ficaremos sabendo como "vida" funciona. E aí este espaço não caberia mais a Deus.
Em todos os pontos onde trabalhamos nas "manchas brancas" da paisagem do conhecimento, ultrapassamos limites. Mas é preciso ter uma filosofia ou uma crença, antes de sequer ousar dar um passo por sobre a fronteira.
O professor Günther Gustav Hasinger conta entre os expoentes da astronomia de raios-X, em todo o mundo. Desde 2001, é diretor do Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, em Garching. Em 2005, recebeu o Prêmio Leibniz da Comunidade Alemã de Pesquisas, o mais bem dotado do país.