Uma vida plena, sem Deus
4 de novembro de 2005O universo será finito ou infinito? A partir de quando descartamos as esferas celestes do modelo planetário copernicano, tem-se sempre discutido a possibilidade de um universo aberto.
Porém uma coisa é certa, desde que o matemático russo Alexander Friedmann e o cosmólogo belga Georges Lemaître descobriram, na década de 1920, a solução temporal para as equações gravitacionais: não existe um universo estático, imutável.
Somos os únicos?
É altamente provável que nós, seres humanos, também estejamos vivendo num universo aberto, com espaço infinito. E tentamos a cada dia refletir sobre o papel que nos cabe num mundo assim.
Aqui devemos estar cientes de que – somente em nosso "volume de Hubble", ou seja, a seção observável do universo – o número de planetas habitáveis é de dez elevado à vigésima potência. Neles podem existir seres vivos que, da mesma forma, se perguntam sobre sua função neste "volume" de 14 bilhões de anos-luz.
Antigüidade: compreensão do universo como meta de vida
O ser humano tentou repetidamente encontrar orientação e sentido existencial a partir dos dados objetivos do mundo – por exemplo, na beleza do universo. O filósofo grego Anaxágoras, da época pré-socrática, definia a missão humana como "mirar o cosmos".
Também para Aristóteles, compreender teoricamente o cosmos era a meta da existência, e a maior felicidade humana. Porém, no decorrer do tempo, o saber perdeu esse papel de portador de felicidade e fornecedor de sentido.
Idade Média: fixada no Além
No Cristianismo, especialmente na visão de Agostinho, todo saber secular é tido como vão, como expressão da fixação pagã no mundo, apenas desviando do real sentido da doutrina, que seria conhecer Deus e a alma.
Assim o cosmos, antes centro de significado existencial, fica rebaixado à estação de passagem temporária do homem, a caminho da bênção eterna.
O mundo finito da Idade Média era sabidamente geocêntrico, porém a Terra e suas belezas não constituíam fonte de vida: a razão de ser do homem estava reduzida a esperar o Além.
O ser humano: uma grandeza negligenciável?
Na medida em que o diminuto cosmos medieval foi forçado a se abrir, e o espaço infinito voltou a penetrar o reino das idéias, o medo se espalhou. Pois, embora a duração de uma civilização inteligente seja enorme, em relação a uma vida humana isolada ela parece quase inexistente, diante da infinitude do universo. Deste modo, é possível definir a condição humana nas palavas de Friedrich Nietzsche:
"Ele não esteve aqui por um tempo infinito, foi um tempo breve e ele não permanecerá por uma infinitude. E no fim, quando ele houver desaparecido, nada terá acontecido."
Desde Nietzsche a cosmologia se transformou enormemente – tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo – porém pouco se alterou quanto à posição do ser humano no universo. A descoberta por Alexander Friedmann dos modelos cosmológicos em expansão onidirecional uniforme reforçou a insignificância do homem.
Não apenas ele não habita o centro do universo, como não existem pontos centrais nesse mundo homogêneo. A radiação cósmica de fundo (RCFM), descoberta em 1965, reflete igualmente a uniformidade quase perfeita do universo.
Para que Deus?
Diante de tais constatações – caso não se apele para as opções metafísicas sobre o sentido da vida – estará o ser humano obrigado a cair num niilismo autodestrutivo? Para o homem do século 21 em geral não é mais admissível o recurso a instâncias religiosas como fonte de sentido. Pelo menos na Europa, a consciência crítica alcançou camadas tão amplas da população que para elas está fora de cogitação procurar a resposta na ligação com um ser espiritual extraterreno.
Neste ponto, os adeptos da posição tradicional teísta costumavam operar com o argumento da ameaça: "Sem Deus nada faz sentido". Assim, eles queriam fixar a imprescindibilidade de sua instância de sentido, evitando ficar acuados, tendo que admitir que Deus seja apenas uma opção entre tantas – e talvez nem mesmo a melhor de todas.
Justamente porque em dois mil anos de existência a teologia cristã não conseguiu fornecer argumentos suficientes para a aceitação racional de um tal ser.
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Nenhum deus em lugar nenhum
Diante de uma situação epistemológica tão desoladora, seria bem pouco inteligente uma pessoa racional fundar o sentido de sua vida e a sua orientação existencial sobre um ser ontologicamente tão duvidoso.
Há 2300 anos, o filósofo grego Epicuro já desaconselhava o homem a basear suas metas existenciais em ilusões metafísicas. Sobretudo ele argumentava que – com suas explosões de cólera e ameaças de punição em tenebrosos infernos – os deuses haviam trazido mais infelicidade do que felicidade aos seres humanos.
Deste modo, sabiamente antecipava aquilo que, na era cristã, encontraria seu apogeu nas visões infernais de um Dante Alighieri (A Divina Comédia).
Epicuro aconselhara o homem a desviar o olhar da vastidão espacial de seu lugar de morada, voltando-o para a configuração de seu intervalo finito de vida. A extensão incomensurável do universo e a significação quase nula de nossa permanência terrena não nos devia intimidar – não, nossa atenção devia concentrar-se no êxito da vida, o cuidado com o próximo dia. Assim, o olhar também não se perderia nas amplitudes da perspectiva escatológica.
Nem os deuses imortais, cuja existência nenhum mortal é capaz de provar, nem a amplitude do cosmos oferecem ao ser humano apoio, força ou orientação. Valores fomentadores da felicidade não aparecem simplesmente em nosso caminho: é preciso nós mesmos os definirmos. Tampouco a filosofia poderá preparar um pacote de valores para cada um. A felicidade humana é individual.
Livre arbítrio como definição de dignidade
É possível citar alguns grupos de valores: música, artes plásticas, literatura e, é claro, a aquisição de saber. Para um entusiasta, até mesmo o cosmos infinito – ou, quem sabe, um conjunto de tais mundos – pode ser o objeto de uma atividade de pesquisa que lhe preencherá a vida e trará felicidade. O engajamento social – como meta autoimposta, não como exigência divina – também pode comunicar a uma pessoa a consciência de que "valeu a pena" viver.
Dentre todas essas alternativas de orientação, é decisivo que o fator doador de sentido não seja determinado por uma instância superior. Que não seja, portanto, imposto à pessoa, sem possibilidade de discussão, mas sim que ela seja totalmente responsável pela definição de sentido.
Se quisermos recorrer ao conceito de "dignidade", então cabe colocar a autonomia, o livre arbítrio, no centro da dignidade humana. O homem possui dignidade justamente pelo fato de dispor de um grau especial de liberdade cognitiva e axiológica, que o capacitam a definir individualmente o sentido da existência.
O ser humano como senhor de si mesmo
Não há motivo para resvalar num niilismo apático em face à condição humana – a qual, sem dúvida, é de total insignificância cosmológica. Embora o "fenômeno homem" seja – diante das miríades de mundos – antes um fenômeno passageiro e secundário, ainda podemos – administrando nossa finitude de modo inteligente – alcançar uma forma de vida plena de significado.
Desnorteados, depois de ter, durante séculos, instâncias exteriores definindo este significado, muitos não concebem a possibilidade de definir, por si mesmos, o sentido, meta e orientação de suas vidas. As religões procuram, é claro, – por puro interesse próprio e reafirmando o quanto são imprescindíveis – declarar a autodeterminação como obsoleta.
Mas o ser humano livre não se deve deixar ludibriar. Começando por estabelecer, ele próprio, uma tabela de valores para sua conduta de vida, ele já estará praticando uma forma de definição de sentido.
Bernulf Kanitscheider é professor de Filosofia das Ciências Naturais na Universidade de Giessen. Entre seus temas principais constam os problemas filosóficos da teoria da relatividade e da mecânica quântica. Kanitscheider é um dos editores da revista Philosophia naturalis: Arquivo de Filosofia das Ciências Naturais e Campos Limítrofes Filosóficos das Ciências Exatas e da História da Ciência.